Εγωφιλια (Egophilia) 5 sonetos ao redor do eu de Nuno Rau

por Rafael Tahan


Este espaço é reservado para criação literária e leva o título de lavradouro, caixa baixa: neologismo cuja arquitetura, pensada pelo poeta Jaci Bezerra (1968, Murici AL), concentra dois vetores semânticos frequentemente associados à poesia. 1: lavra: lavrar, lavoura, lavrador  & suas adjacências: trabalho manual, feitura: poíēsis (ποίησις); 2: d'ouro, corruptela para de ouro, termo cujo eco remonta o passado glorioso do mito (l'âge d'or): e seu antigo ideal : a perenidade: exegi monumentum. Tensionando ofício e permanência fissuramos o significante (núcleo duro do vocábulo); uma vez atomizada, a palavra converte-se em valise: do lastro semântico vemos surgir a ruína semiótica; se por um lado  negamos a sua permanência, por outro  revelamos a possibilidade: menos um pilar, mais um tijolo.

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1.
na metafísica do próprio umbigo 
vão a pique de vez o eu profundo 
e os outros eus, ainda que, no fundo 
das águas geladas do mar de Vigo 
do poema tais fragmentos distintos 
sejam peças de um puzzle que é o mundo 
vasto onde Carlos, Josés e Raimundos 
vão heteronimamente sentidos, 
mas não no espaço abstrato posto fora 
do corpo, seus sentidos, seus desgastes: 
nele mora o que punge e o que devora 
da fera o próprio rabo. Esta arte 
invade – porque é ritmo – quem a leu 
e funda o mundo noves fora eu. 

2. 
em torno do umbigo o eu se acerca 
ou lança âncoras ao desamparo 
de si mesmo, fugir de si é raro 
ainda quando, áspero e fero, aperta 
a própria garganta como quem cerca 
de um carinho cruel e um tanto amaro 
a quem mais ama ou deveria amar, o 
poeta firma o pé, posa de esteta 
cambaleante e cego, anacoreta 
que segue as Musas com seus cães sem faro 
e nada acerta além do pouco claro 
e baço espelho com que arquiteta 
mandar o eu pra casa do caralho 
– mas não consegue mais que um ato falho. 

3. 
se eu é um impostor ou é um abismo 
não sei dizer – ser eu é uma diáspora 
e convoca a falange de suas máscaras 
pra desfilar sem nenhum ascetismo 
na avenida-soneto de um país mo- 
vendo-se pra trás nas invasões bárbaras 
de alas onde embriagados góngoras 
escrevem aleatórios o risco 
anônimo de cada um e cada 
qual, carnaval-caleidoscópio nada 
obscuro, macunaímas em bando 
deixando rastros no asfalto, fulanos 
sicranos, beltranos ou zebedeus 
vociferam deste Sinai: quem? eus? 

4. 
retorcido anda o sujeito 
indeterminado e pouco 
ciente do quão barroco 
este presente imperfeito 
se configura no estreito 
espaço que ocupa um corpo 
a vida não volta troco 
meu caro e com efeito 
se ser eu é um coletivo 
de sombra e luz que se enjambra 
macunaíma é quem samba 
se góngora marca o ritmo: 
de sumir o eu se esqueça 
ser eu é ser gente à beça 

5. 
o soneto não é da dispersão 
do eu um bom lugar, ou da sua ausência 
a terra firme, é a máxima potência 
de um crime que por dolo ou diversão 
o autor pratica, o lugar do cadáver 
do eu que se auto-imola sob a dura 
disciplina do metro que obtura 
os sentidos de um mundo amortizável 
pelo leitor-sherlock atrás de pis- 
tas-palimpsestos que a mão escreve 
como enigmas num quadro negro a giz 
que os dias apagam quando desferem 
órbitas falsas e um tanto febris
ao redor de quem ora subscreve.

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Fonte: Incomunidade

Nuno Rau é carioca, arquiteto e professor de história da arte, mestre e doutorando em história da arquitetura, e tem poemas publicados em revistas e sites como Cronópios, Germina, Sibila, Zunai, Mallarmargens, Diversos e Afins, RelevO, Gueto, em diversos blogs e nas antologias ‘Desvio para o vermelho (13 poetas brasileiros contemporâneos)’, pelo CCSP | Centro Cultural São Paulo, ‘Escriptonita: pop/oesia, mitologia-remix & super-heróis de gibi’, que co-organizou, e ‘29 de Abril: o verso da violência’. Autor do livro ‘Mecânica aplicada’ (Ed. Patuá2017), finalista do 60º Prêmio Jabuti e do 3º Prêmio Rio de Literatura. É um dos editores da revista eletrônica Mallarmargens.

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