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Fotografia de © Benno Koch
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por Denilson Cordeiro,
professor de filosofia na UNIFESP.
Falar ou, pior, escrever (porque menos fugidio) fora dos meios e formatos universitários é sempre um risco. Risco de ser taxado de charlatanismo, risco de ser tido por presunçoso e risco de dizerem que barateamos o que precisaria ser encarecido para fazer justiça à reta compreensão do assunto.
Ainda mais sendo professor universitário, cujo compromisso e responsabilidade passam sempre pelo rigor universitário e pela fala modulada pelos códigos de expressão estabelecidos na e para a universidade. Ou seja, artigos, capítulos, livros etc.; aulas, palestras, conferências etc.; arguições, debates, orientações etc.
Para mim, não se trata de libertação, porque entendo o modus operandi na universidade como um cuidado necessário e providencial no aprendizado e na assimilação do decoro, de maneiras consequentes de tornar público o resultado das pesquisas e de responsabilidade com o dinheiro público e com a função da transparência que todo saber acadêmico precisa ter.
Mas não parece haver um “fora do expediente” quando se é professor ou professora. Mas eu gostaria de ultrapassar essa fronteira e reivindicar aqui o ponto de vista não profissional, mas o de simples cidadão tentando pensar em voz pública.
Isso não significa abrir mão do rigor de estudos, da honestidade intelectual e da responsabilidade social. Significa antes a manifestação de um acúmulo de ideias que talvez possam ser enunciadas com o benefício de um certo desprendimento dos formatos tradicionais da universidade, em clima de conversa entre interessados, curiosos e disponíveis.
Não se trata tampouco de experimentalismo, há muitos e muitas que já praticam o “fora do expediente” com competência e talento. E acompanhar alguns deles e delas é suficiente para saber que se tornou um gênero de intervenção digno, com valor e mesmo de utilidade pública. Poderíamos dizer que se trata de um tipo de divulgação, sem, no entanto, aceitar a pecha negativa de banalização.
A intenção é, portanto, praticar uma exposição organizada em torno de um assunto que pode ser de interesse geral, com uma escrita ou fala voltada deliberadamente para o aumento da interlocução. Com a imaginação talvez por isso menos cativa e acuada, acredito que algo como uma reflexão coletiva e variada possa se instaurar.
Base natural
Como todos e todas sabem, Hermógenes é um dos personagens do romance Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. A certa altura, o narrador assim o descreve: “príncipe das tantas maldades, (...) homem sem anjo-da-guarda, (...) ser de uma irara, com seu cheiro fedorento”.
Ou seja, uma espécie de encarnação da pura e gratuita maldade, como vemos confirmada no andamento do livro. Única exceção portanto à regra exposta pelo narrador de que "as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando".
Luís da Silva é o personagem principal do romance Angústia, de Graciliano Ramos. No livro, ele comete um assassinato e durante a narrativa em primeira pessoa pondera se por isso poderia ser considerado como alguém mal por natureza.
Outro exemplo, portanto, da suposição de uma base natural cujo conteúdo poderia revelar a que tipos de consequências os sujeitos poderiam ou não ser levados por um tipo de rígido e perverso determinismo natural. Caberia, por consequência, sobre ele uma condenação a priori.
A natureza de Macunaíma, de Mário de Andrade, é sobretudo não ter caráter nenhum. Nesse caso, trata-se de uma ausência de base, mas não propriamente de mau caráter.
O personagem sofre as contingências do meio em que vive e vai dando ao leitor a impressão de passar de uma falta para um preenchimento, desta vez com um caráter duvidoso, mas constituído ao longo das aventuras que enfrenta no curso da narrativa.
A interpretação honesta e consequente dessas obras e desses personagens é muito mais exigente do que tomá-las como casos de manifestação da ideia que pretendo analisar. Mas, gostaria de dispensar os especialistas para pensar como curioso e interessado apenas.
Esses exemplos podem dar uma ideia do trânsito sinuoso do conceito (se pudermos dizer tanto) de “base natural” (com aspas porque não compartilho da validade do uso da expressão) na abordagem de situações complexas envolvendo manifestações que ferem ou confirmam a dita normalidade da vida social.
O que se segue procura contestar a ideia de “base natural” e argumentar a favor do processo social como a fonte preponderante e decisiva das experiências que acabarão por constituir aquilo que chamamos de nossa identidade, nosso temperamento, nossa compleição ou, se quiserem, nosso “lugar de fala”.
Processo social
Somos resultado do complexo e intrincado processo social e não subsiste nenhuma base natural nessa formação. A suposta (e ilusória) “base natural” sobre a qual a educação e a experiência, em sentido amplo, constituiria um “ser social” é ideológica e fonte de equívocos em cascata.
Já faz tempo que venceu o prazo de validade de ideias como: “fulano é mau por natureza”, “pau que nasce torto morre torto”, “fulana é bondosa por natureza” e afins. Mas há gente que ainda consome temerariamente ideias vencidas.
O que somos, ainda bem, não corresponde a nenhum determinismo unívoco e simples como ingredientes em uma receita. Não faltam exemplos de pessoas muito distintas resultantes de processos sociais semelhantes.
Isso reforça a tese (um tanto óbvia) de que cada pessoa tende a ser única, a despeito dos comportamentos padronizados, das modas, dos paradigmas de corpos e de mentalidades, dos modelos de conduta, aparência e de preferência.
O terror de viver sem credencial de grupo leva até os mais desimpedidos a aderirem, mais ou menos inconscientemente, à autoimolação para arrancarem de si próprios as feições típicas do rebanho ou do “ar de família”.
A singularidade diante dos valores da manada aparece como pura aresta a ser permanentemente eliminada, ocultada e refeita de acordo com as severas leis dos grupos: a recusa, de saída, de todo traço de diversidade.
Toda crise em relação às exigências externas é muito prontamente medicalizada, quando não criminalizada ou judicializada. Ela, no entanto, poderia oferecer a ocasião oportuna (kairós) para refletir sobre a fonte do mal-estar.
Mas, em geral, não dispomos de nenhuma orientação, nenhum treino acerca de como pensar na nossa condição pessoal. A educação formal está ocupada demais com os conteúdos, com os prazos, com as disciplinas e não ensina a pensar.
O pequeno tempo da educação formal poderia, com muita sorte, oferecer ocasiões de agradáveis experiências de descoberta, tanto de si próprio quanto do mundo, férteis situações de sociabilidade e de aprendizado.
Sem sorte, como tem sido a regra, a deseducação vigente encarcera, condena, pune, expulsa, violenta, estigmatiza e bane da memória e da sensibilidade qualquer chance de produzir a boa experiência educacional.
O que resta? Entre uma adaptação quimicamente condicionada e um desajuste psicossocial permanente, a corda bamba da normalidade cobra o alto preço da sanidade em nome de “um lugar ao sol” da solidão em grupo.
Aprender a pensar em si próprio significa, de início, aceitar que não sabemos pensar, e o que chamávamos pensar pode estar comprometido com a vida social vigente e, no entanto, não passa muito de sofrimento.
Em seguida, seria preciso aceitar ou descobrir que somos muito mais complexos do que a simples esquematização metafórica poderia revelar. Mecanismos, máquinas, softwares, hardwares etc. mais desviam do que auxiliam o pensamento.
E onde quer que pulse o núcleo dessa complexidade, passará necessariamente por desmistificar o complexo como difícil e, livre das guilhotinas do esquematismo, tomá-lo como humano e necessário.
Não será a própria ideia de facilidade uma sedimentação de muitas exigências que foram sendo naturalizadas e nos fornecem os critérios para julgar as circunstâncias? As crianças, por exemplo, consideram fáceis algumas complexas manobras tecnológicas inimagináveis para os mais velhos.
O percurso para compreender o que significa “ser humano” deveria ser parte substantiva do trabalho de cada um e de cada uma para aprender a conhecer a si próprio. A educação poderia ter um papel nisso, mas o esquece, quando não o anula deliberadamente.
Na sociedade do “tempo é dinheiro” isso parece sempre perda de tempo. Ou, quando muito, circunstância que demanda exclusivamente “um trabalho profissional” de terceiros. Semelhante a recorrer a um cabeleireiro.
Nenhuma sessão (seja de consultoria, seja de psicanálise, seja de coaching) poderia, sem enganar, prometer ensinar a pensar sobre si mesmo e empreender tal inédito conhecimento. Mas a psicanálise, penso, é a melhor auxiliar, no médio e longo prazo, na busca do aprendizado da compreensão de si mesmo.
Qualquer expectativa de curto prazo ou de “tratamento” eficiente está fora de questão e é parte sub-reptícia da heteronomia típica do comportamento que se quer superar.
Nesse caso, a própria busca como ato autônomo é o meio mais autêntico de começar a lidar com a questão e longe de significar “apenas” um início, comporta em síntese todos os aspectos da existência singular que nos caracteriza.
Se nossas identidades, constituídas pela sedimentação de muitas experiências, pudessem ser pulverizadas, para além dessa violência ademais fatal, nada restaria como suposto alicerce “natural” a partir de onde poder-se-ia imaginar um tipo de reconstrução possível.
Não há ponto de chegada nesse caminho. A busca permanente é desde o começo o próprio fim, e, por sua vez, um perpétuo recomeço. Portanto, nem Sísifo, nem Prometeu, mas talvez Ulisses em luta e voltando sempre a Ítaca.
Isso quer dizer também que se o reforço da ideia de uma “base natural” pode resolver ficcionalmente bem um enredo, seja de livro, de cinema ou de teatro, não pode, contudo, contribuir com nosso entendimento no sentido da apreensão menos drástica e dramática dos nossos recônditos, meandros e mistérios humanos.
Fantástico, muito bom
ResponderExcluirÉ a dicotomia entre o mito do bom selvagem (de Rousseau) e o mito positivista do homem fruto do meio ambiente. Seria o homem naturalmente bom e corrompido pela sociedade? Ou o homem se torna bom se posto num ambiente bom ou se torna mau se for exposto ao ambiente inadequado.
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