Espaço (Sideral) da Verdade


Cena do filme 2001: Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick


por Jean-Pierre Chauvin

Professor da Escola de Comunicação e Artes da USP


“Previsões são o trabalho de profetas, videntes e futurólogos. Não são o trabalho de romancistas. O trabalho do romancista é mentir” (Ursula K. Le Guin).
“Mas, por favor, lembrem-se: esta é uma obra de ficção. A verdade, como sempre, será muito mais estranha” (Arthur C. Clarke).

I

Um dos grandes esteios de incerta crítica literária é supor que a verdade (ou sua representação artística) seja índice de maior ou menor qualidade do texto que se lê, em diferentes tempos e lugares. Se a aproximação entre “veracidade” e “qualidade” fosse uma premissa isolada, sem grandes consequências para os terráqueos que leem distraidamente, o ruído seria pequeno. O problema é que o atributo maior qualidade = mais verdade continua sendo repetido em manuais que versam, a sério, sobre literatura.

Como se sabe, mais ou menos desequilibrada entre a antiga filosofia greco-latina e o senso comum, dito pós-moderno, a estética romântica passou a dizer o que uma obra simbolizaria, representaria ou valeria, em acordo com a suposta sinceridade do escritor e menor artificialidade no modo como escrevia. A literatura parece ter lançado raízes e contagiado grande parte da crítica. No Brasil, meio século após o advento do Romantismo alemão, passou-se a atribuir o adjetivo “romântico” às obras de viés lírico/emotivo/natural/idealista, em que sobressairia o indivíduo oitocentista moderno, pequeno burguês que driblava as ruas fétidas (sem saneamento) e a fumaça industrial, enquanto ansiava pela morte.

O leitor repare: até hoje chamam-se algumas criaturas de “românticas”, caso demonstrem alguma sensibilidade ou sejam capazes de demonstrar (ou fingir) afetos. A confusão entre a sinceridade do homem que escreve (muitas vezes, por dinheiro) e o teor aparentemente honesto de sua prosa ou verso é fecunda. Assim, Machado de Assis teria uma fase mais... convencional (em adesão aos preceitos romanescos e românticos) e outra mais... irônica e realista (como revela a vida ociosa e a língua ferina do defunto autor Brás Cubas).

Nos estudos literários, grande parte dos críticos de nosso tempo continua a suportar a hipótese de que, até o final do século XIX, haveria um modo apolíneo, clássico, pesado, artificial, desonesto, rococó, obtuso – chato, em suma; e que, a partir de certa data (talvez janeiro de 1808, quando Dom João VI abriu os portos aos ingleses; ou 1822, quando Dom Pedro I disse “fico”; ou ainda, quem sabe, 1836, graças aos suspiros metrificados, mas sofridos, de Gonçalves de Magalhães), o homem teria virado a chave histórica.

Em suma, o escritor romântico teria sido insuflado por valores nacionais, ideais neoplatônicos e inquietude revolucionária e seu ego, demasiado grande: maior que o tédio e os charutos. A confusão entre biografia e obra; entre representação honesta e artificial vem sendo apontada por estudiosos sérios e competentes há, pelo menos, meio século, a começar pela Estética da Recepção, na Alemanha (década de 1960), passando por Roland Barthes (na década de 1970) e Jean Baudrillard (na década de 1980). *

Note-se: há artifício na carta de Caminha, no tratado de Fernão Cardim, no sermão de Vieira, nos versos atribuídos a Gregório de Matos, na poesia pastoral de Cláudio Manuel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga, nos versos indianistas, ultrarromânticos ou condoreiros do século XIX, no casamento infeliz explicitado pelos realistas, no fisiologismo naturalista, no sertão de Guimarães Rosa, na pseudo confissão dos narradores de Clarice Lispector, na rigorosa simetria de João Cabral de Melo Neto, nas canções agudas de Cazuza, nos filmes “baseados em fatos reais” e, claro, na ficção dita científica.


II


Em 2018 celebram-se cinquenta anos de 2001: uma Odisseia no Espaço. O filme é considerado um clássico do cinema, mais ou menos sacramentado no nicho das obras audiovisuais cult. Quem ler a nova edição brasileira do romance homônimo, de Arthur C. Clarke, descobrirá que: 1. o filme foi inspirado em dois contos de Clarke: “A Sentinela” e de “Encontro no Alvorecer”; 2. o roteiro do filme foi dividido entre o diretor Stanley Kubrick e o escritor Arthur Clarke.**

Arthur C. Clarke e Stanley Kubrick
nos bastidores da filmagem de
2001: Uma Odisseia no Espaço.


Teriam os roteiristas superestimado o patamar alcançado pela humanidade? De um lado, sim. Afora o que sugerem variados filmes e novelas, que se saiba ainda não foi possível induzir os terráqueos a hibernar em casulos criogênicos (a exemplo do que foi reaproveitado em Alien, lançado mundialmente em 1979). Teria a talentosa dupla Clarke/Kubrick subestimado o grau de barbárie a que a humanidade chegaria? Parece que sim. Nunca fomos tão brutos, nos modos, e tão fragmentários, na comunicação, como hoje: “Quanto mais maravilhoso o meio de comunicação, mais trivial, medíocre ou deprimente seu conteúdo parecia ser” (2001, p. 87).


Decerto, evoluímos. Correto? Há tempos jogamos xadrez através de aplicativos (como acontecia na nave A.M.T. - 1, controlada pelo supercérebro HAL); mas, diferentemente do que sugere a obra de ficção, as relações entre os seis tripulantes da nave e o computador central, pareciam, ao menos, mais cordiais que as nossas – ditas civilizadas, racionais: tão práticas como se tornou “conhecer” e descartar pessoas pelo Tinder.

Qual o tema de 2001? O desconhecido ou, melhor dizendo, o temor ao que não compreendemos: tema tão antigo quanto caro à filosofia ocidental: “Alguém um dia dissera que você pode ficar aterrorizado no espaço, mas não pode ficar preocupado ali” (2001, p. 84). No horizonte dos homens-macaco ou dos astronautas, milênios à frente, havia um monolito: “Era uma placa retangular,três vezes a sua altura, mas estreita o bastante para abarcar com seus braços, e era feita de um material completamente transparente; na verdade, não era fácil de ver, a não ser quando o sol nascente reluzia em suas bordas” (2001, p.38).
Representação material, sem curvas ou arestas, dos buracos negros? Versão mineral da dúvida insondável? Figuração de Deus, ser atemporal, impenetrável e que não se pode alcançar nem descrever? Objeto que mal se divisa e parece caber nos braços, feito item amigável, ao alcance dos sentidos – tato, visão – e, mais tarde, a audição:

"Ainda estavam a cem metros da Nova Rocha quando o som começou. Era quase inaudível, mas, mesmo assim, deixou-os inertes, de modo que ficaram paralisados no meio do caminho, de queixo frouxo e caído. Uma vibração simples, repetitiva e enlouquecedora pulsava do cristal e hipnotizava todos que chegavam perto de seu feitiço"(2001, p. 39).

A isso se vincula outra questão, digamos extraindividual, que nos impulsiona, mas também aparta. Não há mistério e potência maior que o do objeto onipotente fincado no solo da Terra (como sugere o filme), ou lunar (como se lê no conto “A sentinela”). E, como o poder supremo é quase sempre destrutivo, aos poucos a superinteligência artificial do computador HAL alinha-se com um objetivo supostamente maior e mais nobre que proteger a vida dos homens:

"O sexto membro da tripulação não se importava com nenhuma dessas coisas, pois não era humano. Era o altamente avançado computador HAL 9000, o cérebro e o sistema nervoso da nave. HAL (nada menos que computador de programação Heurístico-Algorítmica) era uma obra-prima da terceira revolução informática" (2001, p. 132).

Capa da tradução de 2001 publicada
 pela Editora Aleph



Muito antes de o computador entrar em rota de colisão com os humanos que nele tanto confiam, a presença da tal “placa retangular” já havia dividido os homens-macaco, que passaram a disputar por comida e água com crescentes graus de egoísmo e violência. 2001 parece relativizar tese de que, do ponto de vista biológico, as formas humanoides terão evoluído. “Sem essas armas, muito embora as tivesse usado várias vezes contra si mesmo, o Homem jamais teria conquistado seu mundo. (...) Mas agora, enquanto elas existissem, os dias do Homem estavam contados” (2001, p. 61).


Eis que, no ano de 2001, uma embarcação espacial está em movimento por entre as luas, em nada românticas. A missão da nave superequipada é transportar seus tripulantes através do espaço sideral, para lidar com questões aparentemente corriqueiras, ainda que situadas além da estratosfera terrestre: “a população do mundo era agora de seis bilhões – um terço deles no Império Chinês. (...) havia falta de comida em todos os países; até mesmo os Estados Unidos tinham dias sem carne, e previa-se uma fome generalizada em quinze anos” (2001, p. 67).

Não sejamos ingênuos em considerar Arthur Clarke e Stanley Kubrick como homens à frente de seu tempo. Não se trata de elogio atribuir a um ou dois eleitos a suposta capacidade de antecipar grandes feitos. Possivelmente haja formas emocional e mentalmente mais evoluídas que nós, em nosso tempo; mas seria no mínimo inadequado sugerir que a ficção científica repousasse no futuro. Tempo, por indefinição, que desconhecemos.


Notas:



* Na literatura luso-brasileira, a questão passou a ser melhor enfrentada a partir da década de 1980. De um lado, os videoclipes e videogames; de outro, os estudos de João Adolfo Hansen, Alcir Pécora, Ivan Teixeira, Joaci Pereira Furtado, Roberto Acízelo de Souza, Adma Muhana Fadul, Angélica Chiappetta, Elaine Sartorelli, Maria Cecília de Miranda Nogueira Coelho, João Ângelo Oliva Neto, entre muitos outros. Escrever é artifício, dizem eles. Também nos advertia Ursula K. Le Guin – uma das autoras mais prestigiadas da chamada literatura de ficção científica.

**O livro apresenta o seguinte subtítulo: "Baseado no roteiro de Arthur C. Clarke e Stanley Kubrik

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