Dois fragmentos de Juan Manuel Domínguez

por Rafael Tahan



Este espaço é reservado para criação literária e leva o título de lavradouro, caixa baixa: neologismo cuja arquitetura, pensada pelo poeta Jaci Bezerra (1968, Murici AL), concentra dois vetores semânticos frequentemente associados à poesia. 1: lavra: lavrar, lavoura, lavrador  & suas adjacências: trabalho manual, feitura: poíēsis (ποίησις); 2: d'ouro, corruptela para de ouro, termo cujo eco remonta o passado glorioso do mito (l'âge d'or): e seu antigo ideal : a perenidade: exegi monumentum. Tensionando ofício e permanência fissuramos o significante (núcleo duro do vocábulo); uma vez atomizada, a palavra converte-se em valise: do lastro semântico vemos surgir a ruína semiótica; se por um lado  negamos a sua permanência, por outro  revelamos a possibilidade: menos um pilar, mais um tijolo.

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I
Não somos as ânforas, nem somos o estio, ou as plêiades, os casulos, os vasculhos, as cócegas, as górgonas ou os caranguejos. Somos iguanas assustadas que fogem, abandonando o rabo nos solos fluorescentes e ziguezagueando, para esquivar os floridos vazios da fantasia, as etéreas fortalezas do imaginário que sucumbem ante a futilidade da massa carnal. Somos aves resplandecentes que atravessam as janelas noturnas dos sentinelas apátridas, somos morcegos que caminham que nem négridos anões esquisitos de noite pelos quartos dos letárgicos e dos amantes desconexos. Somos fumaça que se espalha tenuemente no frescor silencioso dos lares afetuosos. Não somos nada e somos o outro. Apresentamos amavelmente um que logo será irremediavelmente substituído, abandonado, dizimado, e seremos o outro, o outro que já imaginamos. Que já sonhamos. E ficamos perdidos entre todos os prováveis, e pulamos pretensiosamente entre todos que já imaginamos, que já criamos e que agora nos recebem na hospitalidade. Somos ânsia que vai embora e nos deixa repousados. Somos a mutante monstruosidade lançada desde nós. E somos a flor vulnerável que se mexe com o vento nas íntimas ladeiras das montanhas imaculadas. Solitárias e voláteis, perecemos ante qualquer olho que decida parar de nos observar.



II

É necessário mergulhar nas águas gasosas etéreas espumantes odoríferas esponjosas e efémeras, cheias de nuvens, onduladas e penduradas, voando-as invadindo-as com a imaginação. Esquecendo-as, bebendo-as, retendo-as dentro dos diques etéreos, espumantes gasosos odoríferos esponjosos e efêmeros para assim chegar nas ilhas invisíveis inauditas inexistentes portuárias e fugazes e por fim abandonar as ilhas e chegar nos pequenos continentes diminutos minúsculos anfíbios aliterados, estremecidos e medrosos que se deslocam sobre as placas tectônicas das ficções hiperbólicas e os estratos arqueológicos ribombantes e desatinados enlouquecidos enfraquecidos nunca esperançados e sempre maquiados sempre emputecidos e alvoroçados ou raivosos alertados das enormes gaivotas invasoras que imaginárias e cruéis descem para tragar e absorver o tumulto o enfado a ira a cólera e assim deixar o vazio o deserto o porto desabitado frequentado por espectros e fantasmas sonhadores solitários invisíveis e transparentes e que ante todas as coisas e toda vastidão só anelam anseiam aspiram e desesperam por um corpo.







Juan Manuel Palomino Domínguez é cineasta e escritor. Já foi professor de fotografia na Universidade de Buenos Aires e professor de cinema em instituições públicas como o Ministério de Desenvolvimento Social Federal na Argentina. Dirigiu um média-metragem e vários documentários. Ganhou concursos de fotografia, representando a Argentina como fotógrafo-jornalista especializado em direitos humanos. Atualmente dirige o projeto “Sarau na Câmera” com o qual participou esse ano de cinco festivais de cinema ao redor do mundo, incluindo o Brasil. Escreve artigos de crítica de cinema, filosofia e sociedade para o jornal “O Município” de Brusque. Também organiza debates sobre cultura, literatura e pensamento contemporâneo.

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