Presença de Otto Maria Carpeaux (I)




Do cosmopolitismo europeu à cidadania brasileira



por Guilherme Mazzafera S. Vilhena,
doutorando em Literatura Brasileira (USP)



Otto Maria Carpeaux (1900-1978) foi um importante intelectual vienense de formação cosmopolita que, após a anexação da Áustria pelo regime nazista alemão, vê-se obrigado a deixar seu país, chegando ao Brasil em 1939. Com rapidez impressionante, aprende o português e se estabelece como uma das vozes mais singulares da crítica literária por meio de inúmeros ensaios na imprensa diária e de obras de fôlego como a História da literatura ocidental. Em meados dos anos 1960, esta mesma voz, atenta aos meneios da história, abandona em grande parte a literatura para dedicar-se aos escritos políticos, dispondo sua pena e espírito em prol da “libertação do povo brasileiro”.



O resumo acima, a despeito do que possa ter de instigante, não dá conta das complexidades de uma vida intelectual marcada por posicionamentos aguerridos e anticonformistas na política e na literatura, bem como por uma cisão essencial entre a metade vivida na Europa e a vida brasileira, cesura evidenciada pela própria assinatura. Pois quem nasce em Viena no dia 9 de março de 1900, tendo por pais o judeu Max Karpfen, advogado e músico amador, e a católica Gizela Schmelz Karpfen, não é (ainda) Carpeaux, mas Otto Karpfen.


A ampla formação cosmopolita é atestada pela múltipla variedade de interesses e instituições pelas quais passou após o término dos estudos escolares em sua cidade natal: Universidade de Viena (química e filosofia), Universidade de Leipzig (ciências matemáticas), Universidade de Paris (filosofia e sociologia), Universidade de Nápoles (literatura comparada), além da Escola Superior de Política e Sociologia de Berlim. Jornalista por ofício, foi o segundo redator-chefe, entre 1934 e 1938, do Reichpost, um dos principais jornais europeus, de orientação monarquista e católica. Além deste, suas contribuições na imprensa espraiam-se pelas publicações Die Neue Rundshau (Berlim), Literarisches Echo (Stuttgart), La Vie Intelectuelle (Paris), La Cité Chrétienne (Bruxelas), De Gemeenschap (Amsterdam), Elckerlyc e Gazet Van Antwerpen (Antuérpia), De Tijd (Haia) e Lo Stato Corporativo (Roma), além das publicações vienenses Neue Frie Presse (Viena), o semanário cristão de filiação católica Der Christliche Ständestaat, que congregava defensores da independência austríaca frente ao avanço alemão, e o jornal Die Erfüllung. Karpfen teve papel importante na revista semanal vienense Berichte zur Kultur und Zeitgeschichte, da qual foi redator-chefe entre 1934 e 1938, além ser o diretor de uma coleção de livros de mesmo nome da editora Reinhold, pela qual publicou um de seus livros mais combativos, A missão europeia da Áustria (1935). Entre outras atuações, foi assistente da Faculdade de Filosofia de Viena (1925-27), roteirista de filmes de cinema mudo em seu período berlinense (1927-29) e diretor da Biblioteca de Ciências Econômicas e Sociais de Viena (1936-38). 

Karpfen enquanto aluno da Universidade de Viena 

A produção bibliográfica de Otto parece ser bastante substanciosa já nos anos 1930, contando com um conjunto prolífico composto, além da tese de doutorado sobre a química do cérebro, por sete livros publicados entre 1930 e 1938, alguns sob pseudônimo: Catolicismo e nacionalismo na França – Um estudo sobre as relações entre doutrina e ação (publicado em francês, 1930); As confissões católica e protestante nas origens e na evolução da literatura alemã moderna (1931); A noção de crise e o pessimismo histórico na literatura do barroco (1932, dedicado a Benedetto Croce, importante influência em seus escritos literários); De Grillparzer até Hofmaansthal. Um século de literatura austríaca (1933); Caminhos para Roma: aventura, queda e vitória do espírito (1934); A missão europeia da Áustria (1935); e A Áustria dos Habsburgos e a Áustria de amanhã (1938, publicado em holandês na Antuérpia). Destes, o único disponível em língua portuguesa é Caminhos para Roma, publicado em 2014 pela Vide Editorial e assinado por Otto Maria Karpfen. A missão europeia na Áustria, assinado por Otto Maria Fidelis, traz a marca inequívoca de um intelectual combativo que advoga convictamente pela independência austríaca em face dos avanços de Hitler, preocupação retomada no livro de 1938, publicado em holandês, assinado por Leopold Wiesinger e também conhecido pelo título Dos Habsburgos a Hitler (Van Habsburg tot Hitler), livro cuja atribuição a Karpfen apresenta indícios de confiabilidade. Os primeiros quatro livros, presentes nos documentos do processo de nacionalização (Processo 10.345/42) salvaguardados no Arquivo Nacional (RJ), ainda não foram localizados por pesquisadores, o que faz de sua existência e autoria uma conjectura.


Karpfen parece ter transitado entre importantes rodas intelectuais, além de ter assistido a algumas conferências de Sigmund Freud e esbarrado em um então incógnito Franz Kafka, de quem seria o introdutor no Brasil e cuja primeira edição de O processo seria um dos poucos tesouros preservados de sua biblioteca europeia. Da formação especificamente vienense, embora sempre contrabalanceada pela experiência cosmopolita em grandes centros europeus, Karpfen parece ter herdado, conforme propõe Mauro Souza Ventura, seu principal estudioso, um vínculo profundo com a cultura barroca do Império Habsburgo associada a um ecumenismo católico que se faz visão de mundo, atravessada constantemente por um sentido trágico da existência, elementos estes que se farão notar abundantemente na crítica literária desenvolvida em terras brasileiras. Mais especificamente, as ideias de Karpfen, próximas de uma visão social-cristã, encontravam certo eco na atuação dos dois últimos primeiros-ministros austríacos Engelbert Dollfuss e Kurt Schuschnigg. O primeiro fora assassinado em 1934 em uma tentativa de golpe nazista, enquanto o segundo se viu forçadamente demitido e preso em 1938, circunstâncias ominosas que tornaram insustentável a permanência de Karpfen na Áustria na iminência do avanço hitlerista. Tal como exposto em A missão europeia da Áustria, Karpfen defendia um papel a ser desempenhado por seu país natal em função de suas raízes históricas como bastião da cristandade contra o avanço turco, congregando múltiplas identidades culturais e orientando sua ação para um viés fortemente supranacional, reminiscente do Sacro Império Romano-Germânico e, portanto, em flagrante oposição à visão nacionalista e pangermanista do Reich alemão.


A emergência do Anschluss, a absorção da Áustria pela Alemanha tão combatida por Karpfen, dá início à sua “fuga kafkiana da Europa”, tal como descrita por um de seus estudiosos. Em 16 de março de 1938, Karpfen e sua esposa partem em direção à Itália, de onde rumam para a Suíça e, daí, para Bélgica, permanecendo certo tempo no país trabalhando para a Gazet van Antwerpen, jornal belga de língua holandesa. Em 25 de julho de 1939, obtém no consulado brasileiro na Antuérpia um visto permanente para ele e sua esposa, Helene Silberherz, judia alemã nascida em Otynia (atual Ucrânia) e filha de David Silberherz e Chane Rosenkranz, com quem Karpfen se casara em 12 de fevereiro de 1930. Karpfen ficara sabendo da possibilidade de obter esse visto, parte dos três mil vistos negociados entre o arcebispo de Munique, D. Michael von Faulhaber, e o papa Pio XII – e referendados posteriormente pelo presidente Getúlio Vargas, buscando manter boas relações com a Igreja –, por meio do padre holandês Ambros Pfiffig, de modo que o casal fora incluído na cota de “católicos não arianos”. Aos olhos da Igreja Católica, Carpeaux não era judeu, tendo se convertido ao catolicismo em 1933 e supostamente adotado o nome Maria em função disso, mas para a orientação antes racial do que religiosa da perseguição nazista tal fato era irrelevante. Desconhecendo a língua portuguesa e a literatura brasileira, sua vinda às nossas plagas tinha forte sabor de aventura livresca.


Na viagem a bordo do vapor Copacabana, que desembarcou no Rio de Janeiro em 10 de setembro de 1939, poucos dias após o início da Segunda Guerra Mundial, diz Carpeaux ter-se deparado pela primeira vez com o nome de Machado de Assis ao ler uma história da literatura brasileira de um lusófilo francês disponível na biblioteca de bordo. O mesmo Carpeaux, sempre dialético, fala também de um encontro anterior, ainda na Bélgica, com uma tradução francesa das diletas páginas de “O velho senado”, as maiores que leu em prosa portuguesa. Independente das origens efetivas do encontro com Machado, cabe notar que ele se deu sob o signo da fuga e deslocamento e, sugestivamente, o constante retorno de a Machado e seus textos por parte do crítico alicerça-se na percepção de um locus movente que a crítica brasileira ainda não conseguia precisar (sendo os mais prolíficos, neste sentido, os esforços de Augusto Meyer). Autor e crítico irmanam-se, também, em um dos epítetos preferidos de Carpeaux para uma classe muito específica de autores, os twice-born, formulação que remete à duplicidade dialética de uma cisão profunda na vida, mas que retorna, amplificada, no modo de ler e compreender nosso autor maior: “É preciso ler Machado, primeiro, para saber como são os brasileiros; depois, para saber que são assim mesmo os homens”.


Os inícios de seu périplo brasileiro não foram dos mais fáceis. Após um encontro sisudo com Alceu Amoroso Lima na sede do Instituto Dom Vidal, no Rio de Janeiro, Carpeaux acabou sendo enviado para Curitiba e, dali, para uma colônia agrícola em Rolândia, interior do Paraná, onde experimentou uma vida de poucas motivações intelectuais, o que o levou a escrever uma carta enfurecida a Alceu, desdenhando a“ falsa caridade católica” até então usufruída. Após este período, Carpeaux e Helene mudam-se para São Paulo, onde também não vislumbram grande perspectiva de permanência, cogitando inclusive uma mudança de país, possivelmente para o México. A vida dura o obrigou a se desfazer da maior parte dos poucos livros que conseguira trazer para o Brasil, escambo de pouca valia naquelas circunstâncias. Desanimado e combalido, uma mirífica oferta de trabalho do prestigioso Correio da Manhã, mediada por aquele que se tornaria um de seus principais amigos brasileiros, Álvaro Lins, mudou seus rumos, levando-o de volta ao Rio de Janeiro, cidade que não mais deixará. Na véspera da estreia no jornal, que se deu com o artigo “Jacob Burckhardt – o profeta de nossa época”, Álvaro Lins introduziu-o ao público leitor do periódico em “Apresentação de um companheiro europeu em exílio”, publicado em 19 de abril de 1941. Além de destacar o “critério absolutamente universal” da formação europeia de Carpeaux, Lins também ressalta a adoção consciente do pseudônimo Carpeaux – afrancesamento do sobrenome original Karpfen e que se torna sua assinatura vitalícia – enquanto marca de um intelectual que tem por busca “a despersonalização da própria obra” e que, acrescentemos, privilegia em sua atuação como historiador da literatura uma história dos estilos em detrimento dos autores.


Uma vez em posse de um emprego fixo que lhe conferia aos poucos projeção nacional, ampliando o escopo de publicações para as quais contribuía (Revista do Brasil, O Estado de S. Paulo, A Noite etc.) e, consequentemente, o seu domínio da língua portuguesa, Carpeaux buscou a efetivação de outra questão fundamental: a obtenção da cidadania brasileira. O sucesso da empreitada dependia da superação de alguns obstáculos burocráticos, como o prazo mínimo de dez anos de residência contínua previsto na legislação então vigente bem como a comprovação de quitação do serviço militar obrigatório. Diante dessas dificuldades, a opção de Carpeaux foi a de escorar-se no benefício de sua atuação intelectual, uma espécie de naturalização por recomendação, levada diretamente ao presidente Getúlio Vargas. 


Visando fortalecer este argumento, um abaixo-assinado com 38 nomes expressivos da intelectualidade carioca de então, entre os quais Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Álvaro Lins, Sérgio Buarque de Holanda, Graciliano Ramos e Cecília Meireles, foi encaminhado ao ministro da Justiça em 7 de outubro de 1942. Além da superação dos entraves anteriormente indicados, o abaixo-assinado também solicitava prioridade cronológica sobre os demais, lastreada pelo interesse profundo de Carpeaux pela vida brasileira, expresso em seus artigos jornalísticos que atestavam a percuciência do crítico ao examinar escritores nacionais como Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Carlos Drummond de Andrade, por exemplo. Marco expressivo da conquista de autoridade crítica sobre a literatura nacional é o impressionante “O brasileiríssimo José Lins do Rego”, texto escrito a pedido do escritor paraibano e incluído como prefácio na primeira edição daquele que se tornaria seu romance mais importante, Fogo morto (1943). Atipicamente, o processo de naturalização durou menos de dois anos, iniciado formalmente em 30 de janeiro de 1942 e publicamente ratificado em 20 de janeiro de 1944, de modo que, ao fim da Guerra, Carpeaux já era considerado cidadão brasileiro.


Anos mais tarde, referindo-se à sua primeira visita à Europa após a fuga, Carpeaux não deixa dúvidas sobre a profundidade de seu enraizamento: “Quando em 1953 passei seis meses na Europa, revendo todos os lugares onde tinha vivido, na Áustria e Alemanha, Bélgica e Holanda, Itália e França, já não fiquei emocionado. Emocionado fiquei, sim, ao rever o Rio de Janeiro.”


A fixação estava completa.

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Na segunda parte, nossa mirada se desloca para atuação de Carpeaux como crítico literário, incluindo as seis coletâneas de artigos, publicadas entre 1942 e 1960 e vastíssima História da literatura ocidental.






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Este texto foi elaborado a partir dos seguintes estudos, que recomendamos ao leitor interessado:


BÓGEA-CÂMARA, Vinícius. Otto Maria Carpeaux: Exílio, adaptação e modelagem do SELF no Novo Mundo. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Instituto Universitário de Pesquisas do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004.
BRUNN, Albert von. Uma fuga Kafkiana da Europa. Rascunho, n. 157 Curitiba: maio de 2013, pp. 12-3.
CARPEAUX, Otto Maria. Depoimento machadiano. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 27 set. 1958, p. 2.
KOIFMAN, Fábio. Cidadão carioca: a naturalização de Otto Maria Carpeaux. Intellèctus, ano XIV, n.2, 2015, pp. 169-188.

LINS, Álvaro. Apresentação de um companheiro europeu em exílio. In: Jornal de crítica. 1ª série. Rio de Janeiro: José Olympio, 1941.
PEREZ, Renard. Biografia. In: CARPEAUX, Otto Maria. As revoltas modernistas na literatura. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1968, pp. 11-23.
SILVA, Eduardo Gomes. Imagens de Otto Maria Carpeaux: esboço de biografia. Tese (Doutorado em História Social) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015.
VENTURA, Mauro Souza. De Karpfen a Carpeaux. Formação política e interpretação literária na obra do crítico austríaco-brasileiro. Rio de Janeiro: Topbooks, 2002.

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