Julho de 2013




por Fabiano Lemos, professor de filosofia da UERJ



“Mas é muito de espantar ter dado tão boa terra tanto tempo a gente tão inculta, e que tão pouco o conhece, porque nenhum deus tem certo e qualquer, que lhe dizem, esse creem”.
Manoel da Nóbrega, carta de 10 de agosto de 1549.

ἀλλ᾽ ἐν κακοῖςτοῖςσοῖσινοὐκ αἰσχύνομαι 
ξύμπλουν ἐμαυτὴν τοῦ πάθους ποιουμένη.
Sófocles, Antigona, vv. 540-541.

prasbixa tudo.


I
(...) como se o começo fosse uma profissão de fé (...):
Já de partida tenho de admitir que sou profundamente – quase profissionalmente – pessimista. Mesmo minha admiração por alguns daqueles que combatem as desigualdades em nome de alguma coisa não me impede de considerar a esperança um mau começo para a política. Ao contrário, me interesso em pensar o modo como a política se instaura entre as franjas imprecisas da ação e da inação – ou seja, se houvesse um ato fundador do político (esse mito perigoso da ancestralidade identitária), eu teria de dizer que ele se traduziria, para mim, como desespero. E, com ele, nenhum programa seria mais rigoroso e mais urgente que aquele constituído pelo estranho termo que alguns autores do Romantismo alemão, no início do século XIX, vincularam à própria ideia de política: a palavra Verwirrung, confusão [cf. NOVALIS, 1965, pp. 432-434]. Digo isso sabendo que a simples menção de uma palavra alemã, de um substantivo alemão, de um conceito alemão, estranhamente, é capaz de suscitar a desconfiança de que se insinua algo anacrônico, politicamente alienado, senão conservador. Não é aqui o lugar de dizer porque essa desconfiança é uma tolice, resultado de uma falta de leitura, de uma compreensão política do que é a leitura. Não é o lugar de tentar assinalar os aspectos subversivos, por exemplo, do Romantismo alemão – algo que tenho me dedicado a fazer nos últimos anos em minhas aulas, talvez sem sucesso. Enfim, digo isso não apenas para garantir o tom melancólico e arrogante do que se segue, não por fazer as vezes de um enfant terrible do apocalipse político, mas para justificar o motivo pelo qual meus comentários não podem se inscrever em quaisquer debates sobre o que devemos fazer – por incompetência minha e também pelo meu horror às identidades, à estrutura lógica das identidades, ao imperativo que delimita, de uma vez por todas, quem é dono de que tipo de discurso, quando e como começa e termina a estética, a moral, a política e o meu próprio corpo, em última análise. Nada disso me diz respeito aqui. Os aspectos mais importantes da resistência contra a opressão, que se expressam na belíssima e trágica pergunta de Lênin, “o que fazer?”, me parece que podem ser traduzidos agora em uma outra questão: “como não fazer parte?”. Para alguns, essa é uma indagação vulgarmente negativa, e, por isso, diriam, estéril. Pois bem, gostaria, então, de dar a ver essa esterilidade, essa incapacidade de procriar, de reproduzir, gostaria de pensar em um modelo de ação política que não se multiplicasse pela procriação, pela cópula perfeita macho-fêmea, pela síntese ou pela harmonia, mas proliferasse como um contágio, disruptivamente, desagregadoramente, no registro da perversão. Nesse sentido, meu ponto de partida tem a ver com uma ressignificação, que eu formulo da seguinte maneira: seria mesmo um sonho tirar das mãos da direita uma ideia diante da qual ela nunca esteve à altura, uma ideia que sua estupidez destruiu porque tornou comum: a ideia de ódio e, por extensão, a ideia de vingança.
Um belo sonho, como vocês podem ver. Inútil. Pretensioso, certamente. Mas como poderia ser diferente para alguém que, como eu, não pensa a justiça como uma disposição ética, ontológica ou natural, mas como aquilo que se constituiu dentro de um quadro identitário que opera, historicamente, muitas exclusões? Em última análise, a justiça, lida pelo avesso, é aquilo que instrumentaliza.e perpetua a violência do Ser. Gosto de imaginar como seria bonito se o coro geral dos indignados não fosse “justiça!”, mas “vngança!”.
Dentro desse campo conceitual precariamente definido – mas que conceitos, que práticas, que teorias não são irremediavelmente precários? – arriscaria dizer o seguinte: 2013 começou como uma revolta do ódio e terminou como a vitória do amor – e esse foi o gosto do seu fracasso. É claro que a definição de amor e ódio que insinuo aqui guarda algo de irônico – mesmo porque não acredito na possibilidade de se fornecer critérios universais para o que quer que seja – e se poderia mesmo invertê-las. Mas qualquer um que leia com atenção, por exemplo, as cartas que os padres jesuítas escreveram, no século XVI, sobre a necessária conversão dos índios brasileiros é capaz de avaliar o poder destrutivo do amor. É em nome dele e através dele que toda uma cultura é aniquilada e pauperizada, com a enorme vantagem, para os catequizadores, de se apresentarem como defensores dos índios contra a violência dos colonos. Além disso, é de se espantar (ou não) que todo o amor incondicional de personagens como os padres Manuel da Nóbrega ou Antonio Vieira os tenha feito se indignar com a escravidão indígena, mas considerar, ao mesmo tempo, a escravidão africana como legítima e necessária [cf., por exemplo, VIEIRA, 2015, p. 422 e ZERON, 2011, passim]. 
De certa maneira, é essa estrutura do amor, esse jesuitismo que expressa um universalismo para poucos, que se deixa ver nas primeiras reações da elite – e de seu macaco de estimação, a classe média – contra as manifestações organizadas pelo Movimento Passe Livre em São Paulo nos dias 6 e 7 de junho de 2013, contra o aumento das tarifas de ônibus, trens e metrô. O modo como os ameríndios dos primeiros séculos resistiram à gentil catequese jesuíta, teimando em sua nudez, em suas danças e cauinagens desordenadas e em seu gosto pela carne humana, foi sentido pelos europeus como a própria presença do demônio, de tal modo que a construção do paraíso tropical dependia de sua destruição, de sua recondução ao Ser da Verdade que, embora tenha se perdido no passado, poderia ser resgatado pelas mãos firmes dos missionários. Ora, os Nóbregas e os Vieiras da Avenida Paulista são aqueles que, amedrontados e indignados com os selvagens manifestantes, com sua algazarra infernal, exigem sua catequese. Sua retórica, aparentemente mais raivosa que a dos padres dos séculos XVI e XVII, opera, contudo, a mesma economia da dominação: instaura a demanda nostálgica de uma ordem esquecida, opondo a baderna das ruas ao amor doméstico, familiar. Basta lembrarmos dos comentários que um promotor de justiça da 5ª Vara do Júri de São Paulo publicou em sua conta do Facebook no segundo dia das manifestações: 

“Estou há duas horas tentando voltar para casa, mas tem um bando de bugios revoltados parando a avenida Faria Lima e a Marginal Pinheiros. Por favor, alguém poderia avisar a tropa de choque que essa região faz parte do meu Tribunal do Júri e que se eles matarem esses filhos da puta eu arquivarei o inquérito policial. Petistas de merda. Filhos da puta. Vão fazer protesto na puta que os pariu...Que saudade da época em que esse tipo de coisa era resolvida com borrachada nas costas dos merdas...” [citado em JUDENSNAIDER et. al., 2013, p. 38].

Não vou entrar no mérito dessa qualificação da puta como lugar da hecatombe do Império – um lugar clássico da axiologia dos masturbadores cristãos neuróticos. De uma ou de outra maneira, o que poderia, de início, ser considerado um rompante tipicamente patético da raiva reacionária, revela, em seguida, algo muito mais terrível: a mortalha e o chicote que se exigem são, fundamentalmente, instrumentos do amor. Como o próprio promotor esclarece um pouco depois, ainda em seu Facebook: “(...) o comentário foi fruto puramente do desabafo feito por pessoas que estavam há muito tempo no trânsito (3 horas no total), mas que tinham compromisso com seus filhos de poucos anos de idade, que os aguardavam sozinhos para serem apanhados (...)” (Idem, p. 45). A cauinagem diabólica dos manifestantes do Movimento Passe Livre é estabelecida, assim, como antítese do amor paternal, em última instância, cristão. No fundo, todo o ódio bovino dos que pedem a volta da ditadura, dos que são contra tudo o que está aí, dos homofóbicos, dos misóginos, dos que odeiam as polêmicas (inclusive no interior dos departamentos de filosofia), dos que batem panela, mas não admitem o golpe dado, tudo isso, enfim, repete infinitamente a estrutura epistemológica desse amor no qual a recusa histérica das diferenças é apenas o sintoma superficial de uma vontade de preservar um lugar domesticado (as ruas, afinal, destroem os lares e as famílias) e de fazer parte, a qualquer preço, da Ordem do Ser. Enquanto caracterizarmos tal atitude como simples ignorância, ainda lhe fornecemos o álibi da esperança e ignoramos, nós mesmos, a perigosa efetividade do reacionarismo, que opera sempre visando à lógica da retenção, da estagnação, da domesticação, da catequese (pela cruz ou pela bala, tanto faz aqui), ou seja, faz funcionar uma pulsão de síntese.
Se do lado do ódio das elites o que explodia era o amor, na trincheira dos vândalos, era a demanda de não fazer parte que expressava um outro tipo de ódio. Do ponto de vista das narrativas construídas midiaticamente, o que era condenável entre os bárbaros que quebravam vidraças (enquanto a polícia atirava em suas cabeças) era o fato de que eles não queriam nada, não acreditavam em nada, e, portanto, não queriam dialogar: foi, na ocasião, o diagnóstico do PSDB, do PMDB, do PT e do PC do B. É particularmente interessante a maneira como essa avaliação geral repercute um outro diagnóstico, mais antigo, quando Manoel da Nóbrega dizia que os índios não acreditavam em nada, não tinham fé, nem lei, nem rei, o que justificava sua desapropriação física e metafísica (cf. NÓBREGA, 2017, p. 57; ALCIDES, 2009). Quando o Movimento Passe Livre resolveu não negociar com a prefeitura de São Paulo, na medida em que essa insistia em propor reuniões informais e pautas vagas, foi a confirmação que as grandes mídias esperavam: os índios da Avenida Paulista, teimosos, eram os canibais da família brasileira.
Teria sido uma estratégia inteligente se os manifestantes tivessem explorado o elemento subversivo dessa caracterização da imprensa, pervertendo-a. Objeta-se, frequentemente, que os equívocos de junho de 2013 derivam, de fato, de não ter havido aí uma entidade ou uma figura unificadora que concretizasse a imagem dos “manifestantes”. Essa objeção, justa apenas se considerarmos a política pela via representativa, não toca em nada meu problema, já que ele não se dirige à facticidade, mas ao nível de realidades constituídas no interior de disputas discursivas (e é preciso ter muito cuidado para não se reificar ingenuamente o sentido de disputa aqui). Seja como for, no quadro da dominação identitária que proponho, não foi por não estar unida o suficiente que a multidão heterogênea vacilou em seus objetivos, mas, insisto, por não explorar o bastante sua Verwirrung, sua confusão, sua selvageria antropofágica. A confusão é um todo não sintético: assim funcionam os bandos. No entanto, o que se observa muito cedo nos protestos é a capitulação diante da armadilha das identidades proposta pela grande mídia, e não sua perversão, que teria sido muito mais inesperada, e, portanto, estrategicamente mais útil. Se os vinte centavos eram a luminosa moeda comum, foi estranho (mas não surpreendente) assistir a muitos estudantes, ativistas digitais, aos que foram chamados de Black Blocs, aos que queriam tudo e aos que não queriam nada, se esforçando para se distinguirem uns dos outros. Assim, no dia 13 de junho, um dos dias mais violentos dos protestos, no paroxismo da truculência da repressão da polícia e dos aparelhos de Estado e de Comunicação em geral, uma representante do Movimento Passe Livre declara na televisão que não apoia a depredação por parte de alguns manifestantes, insistindo que a tática de seu grupo era pacífica. No mesmo movimento distintivo, desde o dia 17 de junho, no quinto grande ato, que reúne mais de cem mil pessoas em São Paulo, muitos passam a usar roupas verdes e amarelas, a princípio como forma de se distinguirem do preto dos Black Blocs – o que logo abre caminho para o amor nacional e, portanto, para o fim de um projeto de mudança. E não é estranho, mas profundamente patético e enfadonho, que ainda hoje a própria ideia de disputa discursiva em torno de 2013 esteja associada à necessidade de determinar a legitimidade de quem fala, de distinguir quem pode e quem não pode falar, o que mal dissimula a vaidade dos grupos e indivíduos, com isso totalmente submissos à ideia de um poder normatizador regido pela autoevidência.
No final das contas, o espaço da turba foi efetivamente considerado um espaço vazio – e não um espaço de imprecisão identitária, que poderia ser mais assustador para a classe média. Foi fácil preenchê-lo, logo em seguida, pelas identidades totalitárias, que se orgulhavam, assim, de se opor à vacuidade da esquerda. O amor venceu e as ruas, enfim, foram tomadas, em julho, pela ordem dos indignados de bem. A chegada do papa Francisco em 25 de julho para a Jornada Mundial da Juventude, coroa o apogeu da conversão dos selvagens. Nós, a quem chamam povo, estalávamos de novo um chicote cujo contraponto musical preciso era a docilidade com éramos, nós mesmos, conduzidos ao quartinho sem janela nos fundos do apartamento da civilização. Como dizia Tancredo Neves, o pai e o filho de uma pseudodemocracia que nasceu velha e doente – e, bem rapidamente, morreu – “perante Deus e perante a nação”.

II
(...) perante Deus e (...):
Primeiro como tragédia, depois como farsa. Primeiro Manoel da Nóbrega, depois Francisco. Primeiro os índios, depois nós, os selvagens. Ou seria primeiro como farsa e depois como tragédia? Se eu fosse hegeliano, eu estaria tentado a dizer que julho de 2013 revelou a verdade do mês anterior. Mas Hegel, que afirmava que os negros da África eram uma terra-criança [Kinderland] e o continente inteiro estava “para além do dia da história autoconsciente, embrulhado na cor negra da noite [in die schwarze Farbe der Nachtgehüllt]” (cf. HEGEL, 1970, p. 120), talvez entendesse mais da escravidão pela perspectiva dos que fazem uso dos chicotes. Não se trata, portanto, de dizer que junho é, no fundo, no começo ou no fim, julho. Mas, antes, de pensar como a condição epistemológica de julho substituiu a matilha e a multidão informe pelas pulsões do desejo cristão do todo – ou por sua inodora variante, o amor pela humanidade. Como, ainda hoje – principalmente hoje – promovemos a sanitarização de uma narrativa, de muitas narrativas, e de muitas lutas que tinham de ser monstruosas e confusas e demoníacas, mas que se transformaram na expressão de um desejo gigante, desperto, e, por isso mesmo, facilmente domesticável.
Toco, portanto, meu segundo ponto: a dinâmica subversiva do ódio como resistência política, que não se traduz apenas em violência física, mas também não cai na armadilha da oposição fácil entre violência urbana e paz dos povos. Essa dinâmica solicita esteticamente uma outra: a do horror.
Pensemos um instante no que está do outro lado do chicote de Hegel: a multidão negra de escravos. Mais especificamente, pensemos na Revolução do Haiti, nessa série vertiginosa de eventos que, entre 1791 e 1803 levou à independência da mais próspera colônia francesa de então; mas, mais do que isso, fez com que uma população de escravos negros se revoltasse, matasse uma boa parte dos seus senhores, destruísse suas fazendas – onde, antes, vinham sendo carinhosamente açoitados, mutilados e, através de uma violação contínua, pacificados – expulsaram franceses, espanhóis e ingleses e se tornassem a primeira e única nação de ex-escravos do Ocidente. É certo, como nos mostro há muito tempo o historiador caribenho Cyril James, que o processo de independência comportou um conjunto extremamente complexo de interesses: o dos franceses do outro lado do Atlântico, que se enojavam com a ideia de escravidão, mas hesitavam quanto à necessidade de libertar a mão-de-obra que exploravam; o dos colonos senhores de terra, o dos mestiços que lutavam por direitos, mas não os estendiam aos negros; o dos brancos pobres, enfim, ressentidos pela superioridade econômica de muitos mestiços. Enquanto as revoltas foram organizadas por esses agentes, que se viam como fundamentalmente distintos uns dos outros, toda a luta política era apenas por reconhecimento. Foi somente com a entrada dos escravos na Revolução – entrada difícil, inúmeras vezes sabotada – que ela se revestiu de uma vocação nova: romper todos os elos, construir não uma unidade jacobina, francófila, mas, ao contrário, instaurar uma liberdade de ex-escravos, um ódio infinitamente produtivo, que talvez pudéssemos chamar de resistência intransitiva.
Também se poderia, é claro, mostrar que aqui as atitudes se multiplicam. A fúria dos escravos revoltosos se traduz de muitas maneiras e se ilustra em vários de seus personagens: a fúria de Jean-François e Biassou, que impunham à revolta um modelo militarista desde o começo; a política do medo de Jeannot, que, dizia-se, bebia o sangue dos senhores brancos que assassinava; e, enfim, o ethos republicano de Toussaint L’Overture, que, diplomático, se tornou o primeiro general de um Haiti liberto. Seria ingênuo não enxergar entre eles os impasses definidos por seus interesses particulares. Mas, de um modo ou de outro, o que faz com que a revolta haitiana seja menos domável, que ela se oponha ao fracasso das outras grandes revoluções modernas – inclusive a francesa, que ela não só amplia, mas perverte a seu favor – é que ela se deu a partir de uma massa informe não só de excluídos, mas de aniquilados, sem nome, que tiveram sua ancestralidade sistematicamente apagada, sem ligação com nenhum território ou trabalho, senão aqueles em que foram atirados. Antonio Vieira, no século XVII, dizia aos escravos da Bahia que se conformassem com sua condição, já que o amor de Deus transformaria sua tortura e humilhação em – e essa é a expressão precisa utilizada por Vieira, em um ultrajante trocadilho com a escravidão nos campos de cana-de-açúcar – um “doce inferno”. Para mim, a única resposta à altura dessa acintosa bondade jesuítica foi a meneira como os negros do Haiti envenenaram – física e metafisicamente – o doce de seus senhores, e mastigaram, eles mesmos, o mundo inteiro que passava a lhe pertencer.
Confesso, entretanto, que em toda essa história, não são Jean-François, Biassout, Jeannot ou L’Overture que me fascinam mais. É um outro escravo, que, no limiar das revoltas, reuniu um grande número de negros africanos em torno de um ritual vodu, no qual era sacerdote. Boukman era seu nome, e foi morto, queimado e decapitado logo em seguida pelos brancos enviados pela França para conter a revolução. Mas gosto de pensar nele como um índice inominável, como acelerador de uma multidão sem rosto. Muito já se falou da importância do vodu para a história do Haiti, especialmente como fator social. Há, contudo, uma redução frequente entre os comentadores, que esvaziam o ato de seu caráter místico, como se só assim ele pudesse se tornar propriamente político. Sob essa perspectiva enviezadamente iluminista, o vodu seria apenas o cenário superficial onde se manifestariam, codificados, a união, a força e o espírito sintetizados de um povo. Ora, o que me parece propriamente político é o ato do vodu mesmo, que conjura uma oposição “nós x eles” que não se funda na existência extensiva de uma identidade, mas, intransitivamente, como contágio. 
No dia 22 de agosto de 1791, essa cena, que é considerada por muitos como o ato inaugural da Revolução Haitiana, é, conta-nos Cyril James, constituída pelo sacrifício de um porco, cujo sangue (performatizando, talvez, o sangue dos senhores) é bebido, e que se segue por um discurso de Boukman. Ele diz: 

“O deus que criou o sol que nos dá a luz, que levanta as ondas e governa as tempestades, embora escondido nas nuvens, observa-nos. Ele vê tudo o que o branco vê. O deus do branco o inspira ao crime, mas o nosso deus nos pede para realizarmos boas obras. O nosso deus, que é bom para conosco, ordena-nos que nos vinguemos das afrontas sofridas por nós. Ele dirigirá nossos braços e nos ajudará. Deitai fora o símbolo do deus dos brancos que tantas vezes nos fez chorar, e escutai a voz da liberdade, que fala para os corações de todos nós!”[JAMES, 1989, p. 87].

O que fala aos nossos corações, diz, portanto, Boukman, o que nos torna, enfim, um nós, se traduz pelos signos do movimento (a vingança), da ruptura com os signos do Outro dominante (a destruição da cruz cristã, aqui sugerida), da informidade grandiosa (as ondas e a tempestade), mas, principalmente, de um olhar que, escondido, está em toda parte e vê todas as coisas: um olho negro aberto e invisível, pronto e retesado no fundo escuro da colônia. Engana-se, a meu ver, quem enxerga no porco sacrificado ali e nas palavras encantatórias de Boukman um mero mecanismo de representação. Ao contrário, o que o vodu faz é estabelecer esteticamente – e, por isso mesmo, imediatamente – a continuidade ontológica entre o porco e os senhores de escravos, e a palavra tem de ser o som produzido por essa vinculação, uma espécie de feito acústico produzido, mecânica e metafisicamente pela ligação súbita de objetos antes desvinculados e que revelam, agora, a verdadeira cosmologia. Algo semelhante ocorre na eucaristia cristã: o aparente complexo de próteses constituído pela hóstia e pelas palavras da liturgia não é substituto do corpo e do amor de Cristo, mas sua presentificação mesma. O poder de síntese desse amor faz com que uma mudança ontológica dê o sentido de verdade de cada elemento da cena eucarística: nada mais é prótese quando mastigamos o pedaço de farinha seca que é a carne do Messias. Mas, também nesse sentido, o vodu é uma antimissa, já que nele, o que se produz não é a síntese de um único corpo, que se dá a todos e igualmente, mas a dispersão total do Ser. O corpo do senhor branco passa a estar presente, de fato, nos mais variados objetos: um animal, um boneco, um pedaço de maneira. Nenhum signo centralizador definitivo – como a hóstia ou o protocolo litúrgico – é estabelecido aqui. Nessa multiplicação, tudo é prótese e o mundo em revolta se torna descentrado, desprovido de referencialidade e sempre pronto a revelar continuidades e vínculos ontológicos imprevisíveis. Eis o que faz do vodu um movimento estrategicamente político, estrategicamente revolucionário.
A descentralização do mundo, contudo, comporta inúmeros perigos. Aliás, há algo desse procedimento apropriado mesmo pelo pensamento conservador, mas seria preciso qualificar as diferenças. Tal apropriação ocorre não quando esse pensamento tenta mostrar que os valores políticos da esquerda são no fundo, ridículos, mas quando procura colocar o que é ridículo e tais valores no mesmo nível ontológico. O vodu da direita, contudo, esse antivodu, opera sua multiplicação através não da ideia de um movimento imprevisível, mas da ideia de repetição. Com isso, não se trata nem da revelação de um único mundo (como na missa), nem da destituição contínua e inacabada da ordem da dominação operada pela multiplicação de sua topografia (como no ritual de Boukman), mas de um mero relativismo, que se organiza pela repetição do mesmo. Um exemplo disso são as dicas da comentarista de moda Gloria Kalil dirigida, no jornal do dia 16 de junho de 2013, aos manifestantes:

“Mais que cores partidárias ou máscaras fantasiosas, é preciso pensar em peças utilitárias para enfrentar a guerra – ainda que unilateral – e se proteger, por mais que todos queiramos uma manifestação pacífica (...). Muito se fala em panos embebidos em vinagre para diminuir os efeitos do gás. Nesse caso, quanto mais sintético o tecido, melhor. Leve camisetas, bandanas, pedaços de algodão, que seguram melhor a substância e também te ajudam a respiram. Acetinados, sedas e acrílicos não são tão eficientes (...) É isso. Nos vemos nas ruas” [citado em JUDENSNAIDER et. al., 2013, pp. 135-136].

Inscritas em uma coluna de moda, o conjunto de estratégias de resistência contra os ataques da polícia ganha a legitimidade de um elegante savoir-faire: aqui, portanto, tudo é repetição, tudo é a mesma prótese. Não se trata de revelar que a luta contra os aumentos abusivos seria tão desimportante quanto saber como combinar calças e sapatos, mas, ao contrário, de afirmar que o lugar da moda é capaz de repetir o lugar da indignação popular, que repete, por sua vez, no instante em que aparece na televisão, a cartela de emoções disponível nas novelas, que repete, em cenários artificialmente iluminados, as questões de toda a antropologia, e assim por diante. O curtíssimo espaço epistemológico que separava essa infinita repetição do mesmo da síntese totalitária do Um, que deu o tom dos protestos desde o final de junho, mas, especialmente, em julho de 2013, foi facilmente atravessado. Nesse momento crítico, Glorinha Kalil é a sacerdotisa antivodu de uma amorosa (e, a meu ver, ridícula) antirrevolução.

III
(...) muito embora Hegel, entre tantos outros(...):
Para finalizar, gostaria de retornar à questão haitiana. Avaliamos hoje que a independência empreendida pelos escravos teve pouco sucesso se medida em relação à longa história de boicotes políticos e econômicos, invasões militares e alianças neocolonialistas impostos pelos Estados Unidos e pela Europa nos últimos duzentos anos àquele país. Talvez não seja possível para nós, hoje, pensar o que aconteceu entre 1791 e 1803, senão sob a ótica do que aconteceu nos séculos XIX e XX. No mesmo sentido, o ponto não é, insisto, que julho de 2013 iluminou a verdade de junho de 2013. Mas que, desde então, desde muito cedo, talvez desde sempre, olhamos para a revolta com as lentes de correção do amor. A esquerda, a direita, e, especialmente os que não são nem uma coisa nem outra, insistem em projetar uma ontologia pacificadora nas manifestações. Suas perguntas são “O que foi isso?”, “Quem estava lá?”, “Quais as causas?”, ou, no pior dos casos “Quem tem o direito de falar sobre isso?”. Nostalgia do Ser, portanto. Missa, portanto.
Sou especialmente cético quanto à possibilidade de sairmos desse quadro de questões. Eu, no entanto, que guardo um ódio que há muito tempo me esforço para transformar em um método rigoroso de reflexão – mas que, afinal, pode ser apenas o sintoma de uma insignificante patologia – sou levado sempre a pensar que o momento mais importante de 2013 foi quando não havia jornadas, não havia junho, não havia sequer 2013, ou seja, quando não havia o Ser, os nomes, as roupas e os coros em uníssono, mas, ainda assim, se pressentia, sem se saber o que, que algo vinha murmurando por debaixo e pelos lados. Aquele momento em que Boukman olha para o porco, imagino que com o corpo rígido – e pronto para comer as entranhas de um mundo que nunca havia sido o seu.
Eis a hipótese mais simples e mais difícil, e que ainda não consigo formular totalmente, no limite de uma leitura que disfarçaria mal minha vaidade e que poderia assumir, facilmente, o tom de uma confissão piegas. O índio que eu sou, o escravo que eu sou, o veado que eu sou, a puta que eu sou, estamos fartos de tanto amor. O que eu não quero, o que eu não queremos, é a dominação de rosto simpático, é ter de fazer parte. E vejam como, de repente, nos encontramos de novo aqui, respirando o ar viciado do quartinho de empregada dos homens de bem. Nós, que temos, mais uma vez, as costas quebradas, os dentes podres, a voz destruída, pobres, com os olhos arregalados e as unhas grandes demais, com medo, com muito medo, com nojo, nada nos resta. E, no entanto, mesmo que isso não sirva de muita coisa, esse desespero ainda é uma carne boa de se mastigar. E é com ele azedando na minha boca que eu gostaria de rogar uma praga aos homens de bem – aos homens de bem que nós somos, e a esse amor paternal que nós temos por nós mesmos: mesmo morto, eu cuspirei no teu cadáver.

Referências bibliográficas:

ALCIDES, S., “F, L e R: Gândavo e o ABC da colonização” In.: Escritos. Revista da Fundação Casa de Rui Barbosa, n. 3, 2009.
HEGEL, G. W. F., Vorlesungenüber die Philosophieder GeschichteIn.: Werke, Bd. 12, Frankfurt amMain: Suhrkap, 1970.
JAMES, C., The Black Jacobins. ToussaintL'ouvertureandthe San Domingo Revolution, 2nd. Ed., New York: Vintage Books, 1989.
JUDENSNAIDER, E. et. al. Vinte centavos: a luta contra o aumento, São Paulo: Veneta, 2013.
NÓBREGA, M., Obras completas, São Paulo: Loyola, 2017.
NOVALIS, “Blüthenstaub” In.: Schriften, Bd. 2, Darmstadt: WissenschftlicheBuchgesellschaft, 1965.
VIEIRA, A., “SermãoXIV” In. Obras completas, tomo II, volume VIII: Se4mões do Rosário Maria Rosa Mística I, São Paulo: Loyola, 2015.
ZERON, C. A. de M. R., Linha de fé. A Companhia de Jesus e a escravidão no processo de formação da sociedade colonial (Brasil, séculos XVI e XVII), São Paulo: Edusp, 2011.

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