Para reler Álvares de Azevedo

por Andréa Werkema (professora de literatura brasileira da UERJ)

Figura carimbada em todos os livros didáticos de literatura, e também em histórias literárias consultadas por estudantes universitários e interessados em geral, Álvares de Azevedo, por trás de sua máscara de poeta ultrarromântico, morto quase adolescente, tem muito mais a ser descoberto. Trata-se de um dos autores brasileiros que mais demonstrou consciência, ou melhor, autoconsciência, em relação a seu fazer literário. Sua obra é organizada por um princípio claro, sob a aparência de desorganização típica do Romantismo. Apresento aqui, em rápido voo, algumas sugestões para que possamos lê-lo com outro olhar.
Manuel Antônio Álvares de Azevedo nasceu na cidade de São Paulo, em setembro de 1831, e morreu pouco mais de vinte anos depois, em abril de 1852, no Rio de Janeiro. Aí crescera e começara seus estudos, mudando-se para São Paulo novamente em 1848, para estudar na Academia de Direito. Nos seus últimos cinco anos de vida, passados, portanto, em grande parte no ambiente universitário paulista, escreveu a sua obra literária e crítica, praticamente toda de publicação póstuma (com exceção de alguns discursos acadêmicos e fúnebres): o primeiro volume de suas obras saiu em 1853, e o segundo em 1855.
Trata-se de uma obra que, concebida e escrita em tão pouco tempo, surpreende pela vastidão e abrangência, indo da poesia lírica à poesia satírica, da prosa ficcional ao ensaio crítico, passando por formas dramáticas e pelos gêneros mistos dos poemas narrativos. Além do mais, é bem visível nos escritos de Álvares de Azevedo uma meticulosa organização interna a partir de uma visão própria da literatura, que orienta a sua produção e dá a ela uma complexidade que se destaca na cena romântica nacional. Dentro do contexto da experimentação romântica, compreende-se logo o programa azevediano de visitar e discutir os gêneros literários; por outro lado, a efetiva realização de um tal programa não cessa de nos espantar, pois o poeta mal teve tempo de passar das leituras formadoras à concepção de um plano estético, daí à escrita, e a uma elaboração maior de seus escritos. O conjunto da obra é obviamente irregular, com momentos melhores e piores – mas em tudo transparece uma claríssima vontade autoral, que distribui por seus escritos temas, procedimentos literários e traços recorrentes que indicam um projeto particular de literatura crítica, no melhor estilo de um Romantismo autorreflexivo (justamente aquele tipo de Romantismo que se costuma acusar ausente no Brasil). E o que temos, afinal, como matéria de leitura e análise, é a obra assim como ela nos chegou: a oscilação romântica entre a irregularidade planejada e a efetiva falta de compromisso com os retoques e emendas da boa escrita apenas acrescenta interesse a uma obra tão claramente dirigida por uma visão peculiar do alcance e dos limites da literatura no Brasil oitocentista.
O exagero emocional e os contrastes acentuados na obra de Azevedo não são fruto de uma expressão imediata (no sentido de não mediada) dos sentimentos ou das idiossincrasias do autor (o que aliás nos parece impossível em qualquer obra de arte): o seu uso retórico de clichês românticos obedece a um projeto literário coerente e sistemático. Sua obra é dirigida e organizada pela figura da antítese, definida nos termos do autor pela tão conhecida “binomia”, como está expresso no Prefácio à Segunda Parte da Lira dos vinte anos: “É que a unidade deste livro funda-se numa binomia. Duas almas que moram nas cavernas de um cérebro pouco mais ou menos de poeta escreveram este livro, verdadeira medalha de duas faces.” A passagem de uma teoria binômica a uma prática efetiva da convivência dos opostos, na obra de Azevedo, é um dos procedimentos mais interessantes da literatura brasileira, execução de um projeto de Romantismo, levado às últimas consequências pelo autor.
A obra de Álvares de Azevedo visita várias das convenções românticas – e as discute incessantemente. Escreveu poesia amorosa de matriz idealizante, assim como poesia de alta voltagem erótica, fruto da interdição do desejo advinda da separação dolorosa entre corpo e espírito. Sua poesia contempla também o humor, a sátira, como manifestação fundamental de sua modernidade crítica. Passou pela prosa terrível e sombria de Noite na taverna e pelo drama de acentos existenciais que é Macário. Visitou ainda os poemas dramáticos e narrativos à maneira byroniana, verdadeira febre romântica, enfatizando sua ligação com sua época literária e com uma visão específica de mundo. Dentre a sua obra vasta, muitos dos textos acabaram por ficar datados, e de leitura difícil em nossa época – outros devem sua legibilidade à extrema originalidade com que o autor adaptou fórmulas e procedimentos literários compartilhados pelo universo romântico, criando uma dicção poética própria. É no paradoxo romântico entre a fundação de uma tradição e a reivindicação pela originalidade que encontramos o ponto alto da obra de Álvares de Azevedo – que vai muito além da imagem mais convencional relacionada ao seu autor, jovem soturno e guiado por mórbidas emoções. Romântico sim, mas, sem dúvida, Álvares de Azevedo nos mostra ainda uma vez que Romantismo é crítica, ironia, autoconsciência.

Comentários