por Rafael Tahan
Este espaço é reservado para criação literária e leva o título de lavradouro, caixa baixa: neologismo cuja arquitetura, pensada pelo poeta Jaci Bezerra (1968, Murici AL), concentra dois vetores semânticos frequentemente associados à poesia. 1: lavra: lavrar, lavoura, lavrador & suas adjacências: trabalho manual, feitura: poíēsis (ποίησις); 2: d'ouro, corruptela para de ouro, termo cujo eco remonta o passado glorioso do mito (l'âge d'or): e seu antigo ideal : a perenidade: exegi monumentum. Tensionando ofício e permanência fissuramos o significante (núcleo duro do vocábulo); uma vez atomizada, a palavra converte-se em valise: do lastro semântico vemos surgir a ruína semiótica; se por um lado negamos a sua permanência, por outro revelamos a possibilidade: menos um pilar, mais um tijolo.
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por Rafael Tahan

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[SEM TÍTULO]
arder
a vida em palavras
medidas
sombra por
sombra
duma
mão noutra arder a vida
na
geografia incerta da boca
que
arde um instante e desce à terra.
arder
a vida nos ecos
e
nos corpos ora nacarados ora suados do
discurso
que o lábio promete
nem
sempre cumpre
e
quando cumpre é sempre quase.
equidistante
do fim e do início arder a vida
enquanto
o corpo se desfaz devagar
com
carinho quase
mas
resoluto.
arder
do verbo absoluto à procura
o
verbo na sarça que se queima magnífico
e
não existe.
arder
a vida pruma bosta qualquer
que
mal nasce já não existe ::
–
arder a vida à procura dum sol pousado na mesa
dum
dia de justiça entre irmãos
e
descer à terra ciente – mas contente, resoluto –
de
nada ter nas mãos.
*
5. PALMONES, 18XX
a)
cansados
talvez os seus olhos
destas
palmeiras
cansados
destas
paredes brancas nuas gastas
de
igreja cansados talvez os seus olhos
de
ruminarem sobre os
lampejos
de mar e
do
labor seu de olhar a Ceuta no horizonte
próxima
e distante
cansados
talvez tenham se cansado os olhos seus
dos
adeuses do mar sobre a areia
–
que volta sempre, arrependido.
27-3-2017
*
6. OLEAJE
muro
branco
onde
os adeuses do mar se recolhem junto à sombra,
salgados
e frescos.
27-3-2017
*
CUIABÁ/CHAPADA DOS
GUIMARÃES
O
vento professa à rocha
suas
aulas do desfazer-se
de
tudo no tempo. O vento
arranca,
da rocha, a areia:
de
grão em grão faz escola:
a
rocha, no ensinamento,
é
aluna: na lição dura
de
nada durar no tempo.
Os
rubros montes de areia
–
Chapada dos Guimarães
em
torno de Cuiabá –
aprendem
suas lições.
Os
montes de forma fraca
desfazem-se
ante um ditado
do
vento: de que o que o homem
ergueu,
o que ele escancara,
esconde
e derruba o tempo:
que
aquilo que o braço monta
o
sopro derrubará:
que
aquilo que o sonho encontra
e
o homem faz realidade
o
tempo outra vez o acha
e
torna outra vez em sonho
que
ninguém mais sonhará.
Paciente
labor do vento,
irmão
mais novo do tempo,
que
esculpe Chapada grão
por
grão: apesar de lento,
certeiro
é no seu trabalho:
que
é muito apesar de pouco,
que
é grande mesmo pequeno,
que
é muitos trabalhos poucos.
Os
montes têm nessa escola
lição
de se desfazer:
que
o pouco que faz o homem,
que
o muito que o homem vê
apaga-se
sobre a pedra
do
tempo em geometrias
secretas
ao despencar:
desfaz
qual desfeito é um dia
na
barra vermelho-roxa
da
tarde, em seu é-não-é.
Aquilo
que o homem faz,
aquilo
que o homem vê,
aquilo
que o homem cala,
aquilo
que o homem diz,
aquilo
que o homem prende
aquilo
que o homem quis
aprende
a lição que aprende
o
monte, ao se desfazer.
O
monte rubro-laranja:
quando
ele iria dizer
do
tempo o grande segredo,
a
resposta que se espera ---
despenca
em areia branda
pra
lá do que já não é.
O
vento professa à rocha
suas
aulas do desfazer-se
de
tudo no tempo. O vento,
de
régua em mãos, instrui: tempo.
27/06/2017
*
B – O SEXO DOS DOIS HOMENS
Na
fresco-gruta
(refúgio)
concha
do não mar fechada à luz despudorada
dois
homens maquinam o presente
no corpo um do
outro
agudo
o tempo presente
agudo
e branco e musgoso e
então
calma e nada –
ah
--- ir e vir da onda do mar
onda
dum mar inexistente
por
isso mais mar.
dois
homens maquinaram o presente
(na
baía um d’outro o maquinaram)
e
não sabem agora onde pô-lo,
ariscos.
lá
fora no céu rumina o boi um presente outro
comum
e outro
alheio
à maquinação do amor.
*
[SEM TÍTULO]
Aquilo que me sou não me é nunca.
Pensando o que serei no escasso espaço
de mim, não sei se penso e sou aquilo
ou se, pensando, passa o tempo e passo
– se passo e já não sou o que pensara,
nem o que penso agora e que já passa.
Não sei se algum momento embosco aquele
que vejo ou se descubro-me sua caça.
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O primeiro poema desta sequência é inédito, os demais estão no volume recém-lançado Poemas em torno do chão & Primeiros poemas (Carlini & Caniato, 2018).
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Foto: Jornal Cidadão Cultura |
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