qvasi: os arquipélagos da fala








por Rafael Tahan, 
editor da Oficina Irritada.



Se a poesia é, conforme Cassiano Ricardo, uma ilha cercada de palavras por todos os lados, o livro qvasi (2017, ed.34) de Edimilson de Almeida Pereira (1963, Juiz de Fora – MG), representa, na cartografia da lírica contemporânea, esse grande arquipélago cujas fronteiras - palavras - são subsumidas em um multívoco fluxo de falares e saberes populares que cercam essas ilhas, como um mar, por todos os lados: mais se diz na falha da fala, conclama o poeta em sua epígrafe.


qvasi, do latim: "como se", é uma obra destinada à memória e, portanto, privilegia a voz ao silêncio, o oral ao escrito. Os 61 poemas do livro distribuem-se em três movimentos: Teorema, Missivas e Letrados. O livro, de subtítulo segundo caderno, revela, além de uma grande contribuição literária, a veia de um poeta que caminha entre as esferas da antropologia, etnologia afro-cultural e religiosa e, com efeito, da filosofia.


Como uma caixa de ressonâncias, E.A.P. empresta a toada dos falares de regiões onde esteve: entre Marrogia, no Cantão de Tessina, na Suiça, e Juiz de Fora, Minas Gerais (2011 - 2013), delegando voz e dando representação poética aos mais inusitados pontos de vista: paca tatu cutia são hipóteses que escapam do cercado. um livro sobre eles começaria com reticências (p.85).

Dos poemas de temática muitas vezes elementar arma-se uma complexa discussão epistemológica - fio condutor do livro - através do choque entre os registros da fala e da escrita, que revelam no atrito, as variadas dimensões da linguagem e suas incógnitas: ...língua/ equação/ de seu próprio dilema (p.15).

O primeiro movimento, Teorema - proposição demonstrada por meio de um processo lógico - é composto por dois longos poemas: "qvasi" e "campo". Apresentando como temática respectivamente a língua e a terra, os poemas são estruturados em parataxe, recurso que da o tom enumerativo e um teor algo enciclopédico aos textos, procedimentos que se repetem no decorrer de todo o livro com mais ou menos intensidade.

Ao explorar a face poliédrica de cada um dos signos eleitos como tema, o autor vai moldando e diluindo a fisionomia do seu objeto, cercando-o no transito entre as várias camadas (ou ilhas) semânticas que o abarcam, remodelando seus contornos: por definição: língua geral; por sugestão língua letal; por condição: língua real; por negação: língua ... que aproxima/ a coisa/ e o nome (p.14).

Do mesmo modo, no poema “campo” a voz poética, descritivamente, sobrepõe camadas e camadas de sentido: de suicídios, de peregrinos, de alívios, dos que governam, dos eleitos, dos calculadores: medi-lo [o campo] é o exílio (p.19). Daí elaboram-se mais subdivisões, dessa vez como num corte transversal, em que se enxerga todas as camadas do objeto: DOS ASSALTOS; DA CARCAÇA, DO FUNIL; DO QUILOMBO; DA FAQUINHA DE PONTA; DA CERA; DAS TOALHAS; DO ALTAR; DO SETE SELADO.

A primeira seção do livro parece situá-lo dentro das categorias elementares da representação da realidade: tempo e espaço, ao mesmo tempo em que as questiona: tatear a origem/ é iludir-se (p.29).

O segundo movimento: Missivas – cartas – leva a discussão da representação teórica à prática. Com 24 poemas de temática variada, compostos entre 6 e 12 estrofes, contém notas sobre objetos, animais, espaços e situações, operando sempre no tênue equilíbrio entre sensação e representação, fala e escrita. Afinal, a distância reside,/nas letras/mais que entre os lugares (p.43). Em outras palavras, a distância entre signo e significado é maior que dos signos entre si.

A partícula como se é uma unidade emblemática da linguagem, pois, opera a partir da reunião dos elementos: como (comparativo) e se (pressuposição) deste modo faz-se meio linguístico para a aproximação e associação livre entre significantes e significados ou construções que ocupam campos semânticos distintos. Este é o princípio da metáfora recurso elementar da linguagem, sempre marcada pela (in)determinação Saussuriana da arbitrariedade do signo.

Edimilson de Almeida Pereira, autor de qvasi

O terceiro e último movimento, Letrados, o mais longo, é composto de 35 poemas. A maior ênfase dada a fala se percebe pela constante variação do registro discursivo que traz de maneira mais ostensiva não apenas o vocabulário arcaizado ou regional mas também a matizada prosódia das variantes dialetais dos locais pelos quais passou o poeta, ora na pontuação precisa que orienta seu ritmo prosaico ora em rimas toantes – recorrentes na fala espontânea.

A exemplo disso destacam-se poemas como "mãi"; "O,"; "pai"; e "cont oos": sendo, este último, uma espécie de categoria que reúne, como nas contações, representações descritivas de animais: urutu, bugio, javali ou histórias sobre gente: Não há violência nessa tarde, talvez, por isso, não se pareça humana.(p.95).

Sob todas suas camadas supra-textuais, os fragmentos da fala ou unidades de imagem - disjecta membra – recompõem alguma unidade fisionômica sob a epiderme da prosódia, marcando novamente as convergências e divergências entre os universos da sensação e representação, afinal, a língua não está/ no andaime/ do corpo. (p.141).

Além disso, a ausência dos marcadores de tempo e espaço em alguns poemas bem como a indeterminação do sujeito poético – que confere traço polifônico ao livro – permitem ao leitor caminhar mais abertamente por campos de sentido pouco convencionais, a exemplo do poema "bosch": O motor a diesel ruge entre arbustos./ Obscuro./ Agressivo. (P.131).

Em qvasi, o real emerge da concretude do texto escrito como coexistência ou sucessão dessas sensações representadas. O poeta parece nos apontar, com esses poemas que a ordem do real nesses versos se determina menos pela correspondência entre sensação e representação, mais pela sua capacidade de, através da linguagem poética, calcular os fenômenos do mundo externo.

A forma processada no texto pelo autor opera como instrumento de apreensão e transfiguração de real. Em qvasi, Edimilson de Almeida Pereira Investiga a linguagem ao invés do mundo, uma vez que o mundo não existe senão pelas faculdades que permitem que ele seja interpretado.



Edimilson de Almeida Pereira é poeta, ensaísta, professor titular de literatura brasileira na UFMG, especialista em antropologia, cultura popular e religiosa.

Comentários

  1. Excelente análise! Resta apenas ler o livro para complementar essa experiência literária!

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