por Rafael Tahan
Este espaço é reservado para criação literária e leva o título de lavradouro, caixa baixa: neologismo cuja arquitetura, pensada pelo poeta Jaci Bezerra (1968, Murici AL), concentra dois vetores semânticos frequentemente associados à poesia. 1: lavra: lavrar, lavoura, lavrador & suas adjacências: trabalho manual, feitura: poíēsis (ποίησις); 2: d'ouro, corruptela para de ouro, termo cujo eco remonta o passado glorioso do mito (l'âge d'or): e seu antigo ideal : a perenidade: exegi monumentum. Tensionando ofício e permanência fissuramos o significante (núcleo duro do vocábulo); uma vez atomizada, a palavra converte-se em valise: do lastro semântico vemos surgir a ruína semiótica; se por um lado negamos a sua permanência, por outro revelamos a possibilidade: menos um pilar, mais um tijolo.
________________________________________________________________________________________________________________
por Rafael Tahan

________________________________________________________________________________________________________________
Uma coisa pela outra: extraídos de As Coisas Arcas - Obra poética 4 (2003, Funalfa edições), os poemas que inauguram esta seção lavadouro (espaço de criação literária da revista Oficina Irritada) revelam a gênese criativa de qvasi (2017, ed.34), do poeta Edimilson de Almeida Pereira, resenhado na coluna Ordem do Dia, assinada por este que vos escreve. Alho por bugalho: como toda poesia bem acabada, os dez poemas que seguem conformam o que o próprio autor intitula:
C ADERNO QVASE
“Gosto de sentir o que os outros estão sentindo.”
Nélson Carvalho da Silva
“A gente não se acostuma com a vida.”
Viajante a Conceição do Mato Dentro
O vermelho alicia
verbos
como se a gente visse
pelos vidros.
A gente sendo espelho
no modo de quebrar
e começar de novo.
As rodas da tarde
não se movem.
Conspiração de janelas.
Na ausência
o azul dispara.
Uma camisa me cega.
como se a gente visse
pelos vidros.
A gente sendo espelho
no modo de quebrar
e começar de novo.
As rodas da tarde
não se movem.
Conspiração de janelas.
Na ausência
o azul dispara.
Uma camisa me cega.
ECONOMIA
Despejo de uma aranha
ofende nossas avós.
São do ângelus
se internam em janeiros
que vão acabando com a gente.
Fazem selas nos moldes.
Sangue a passeio se economiza
com tecidos delas.
São a madureza
que inferniza os cotovelos.
Dos parentescos diluvianos
esse mais se aperfeiçoou.
ALMOÇO
Arroz branco, pequi adentro.
Espaços ao amarelo
para escrever no labirinto.
Com pequi, arroz fica sendo
gelo, não derrete nas folhas
mas na boca.
E nós secos de vontade.
Esse arco-íris, tê-lo
nos dentes por desamparo.
LUTA
A faca se divide.
A gula, o rio, a vigília.
Na cabeceira a morte se divide.
O amor divide a bala,
se toco a vida em sua manta.
Nenhum se salva
debaixo do seu chapéu.
Moro um lugar de verbos.
A calça dos dias
é um tecido inadiável.
A faca se divide.
A gula, o rio, a vigília.
Na cabeceira a morte se divide.
O amor divide a bala,
se toco a vida em sua manta.
Nenhum se salva
debaixo do seu chapéu.
Moro um lugar de verbos.
A calça dos dias
é um tecido inadiável.
Flor sobre a mesa tem irmãs na madeira.
Sendo toalha, puxa histórias do pão,
a companhia de peixes que não tecemos.
Sendo flor, se imprime no lodo.
O pó que alicia a flor é xícara de visitas.
a companhia de peixes que não tecemos.
Sendo flor, se imprime no lodo.
O pó que alicia a flor é xícara de visitas.
Doamos não a carne em horas estreitas,
talvez essa flor, sangue entre cadeiras.
talvez essa flor, sangue entre cadeiras.
VARANDA
Coisas enfrentam aniquilamentos.
Somos impedidos de vê-los
na fala
mas interpelam a paisagem.
Gestos passam a sala
apesar da febre, seguem os circos.
Aos que ouvem afora da janela,
se faz outro o mesmo assunto.
Coisas enfrentam aniquilamentos.
Somos impedidos de vê-los
na fala
mas interpelam a paisagem.
Gestos passam a sala
apesar da febre, seguem os circos.
Aos que ouvem afora da janela,
se faz outro o mesmo assunto.
LINHAGEM
Areias dirigem o rio,
capim subindo a tarde.
Alguém não estranha
que é menos pessoa
e recorda em si
rios areias e pedras.
Imperceptível o desejo
de nascer numa clã
sobrenome lama.
Areias dirigem o rio,
capim subindo a tarde.
Alguém não estranha
que é menos pessoa
e recorda em si
rios areias e pedras.
Imperceptível o desejo
de nascer numa clã
sobrenome lama.
ROTAÇÃO
O dia como um selo no céu.
Vai-se na direção
em que a vida não sofre os precipícios
e precipita.
Dia selado tem freios,
não ameaça truques além do acordo.
Mas o incerto também se cumpre.
Alguém segue rastros,
não se entrega ao que servem
os cordões do sapato.
O dia se esgueira, seu costume.
O dia como um selo no céu.
Vai-se na direção
em que a vida não sofre os precipícios
e precipita.
Dia selado tem freios,
não ameaça truques além do acordo.
Mas o incerto também se cumpre.
Alguém segue rastros,
não se entrega ao que servem
os cordões do sapato.
O dia se esgueira, seu costume.
ANGÚSTIA VOA COMO GARÇA
mas não é leve
seu flautim.
mas não é leve
seu flautim.
Fico meio fera
meio anjo
atento
à sacola dos viajantes.
meio anjo
atento
à sacola dos viajantes.
Noticio a notícia
que tira o fundo
às cadeiras.
que tira o fundo
às cadeiras.
Me habituei a colecionar
o que tivesse
inclinação
para a eternidade.
o que tivesse
inclinação
para a eternidade.
Asa de borboleta
dentro do livro. O livro.
dentro do livro. O livro.
O texto do livro.
A tinta do texto.
A sombra da tinta.
A sombra.
A luz que passa atrás
da garça
enquanto penso.
A tinta do texto.
A sombra da tinta.
A sombra.
A luz que passa atrás
da garça
enquanto penso.
GRAVURA
Retrato sem excesso
nasce do vento.
Desde as ilhas
sua obra desaparece.
E a vemos durar
enquanto as águas
se desesperam.
Esculpe em zeros
a fazenda de búzios.
Não carece de nomes
mas vazios que habite.
FIANÇA
A linguagem me empurra,
não desvio os olhos de sua esfera.
Ela sai de mim, se vou lembrando.
O coração vira dinheiro e perde
o vermelho se alguém o fere.
A casa em tarefas,
jogos de damas entre os mortos.
A linguagem me toma a cintura
e passeia a casa onde fabricamos
mudanças. Uma, sobretudo,
que sendo parca não cessa.
EU RAIMUNDO BARBOSA DE AZEVEDO
DEITO TARDE ACORDO CEDO
DO OFÍCIO
QUASE-RECEITAS
________________________________________________________________________________________________________
Estes poemas foram extraídos de:
Retrato sem excesso
nasce do vento.
Desde as ilhas
sua obra desaparece.
E a vemos durar
enquanto as águas
se desesperam.
Esculpe em zeros
a fazenda de búzios.
Não carece de nomes
mas vazios que habite.
FIANÇA
A linguagem me empurra,
não desvio os olhos de sua esfera.
Ela sai de mim, se vou lembrando.
O coração vira dinheiro e perde
o vermelho se alguém o fere.
A casa em tarefas,
jogos de damas entre os mortos.
A linguagem me toma a cintura
e passeia a casa onde fabricamos
mudanças. Uma, sobretudo,
que sendo parca não cessa.
ELOS
Esse pêlo não pertence
ao corpo de agora.
Impossível conciliá-lo
com as luvas.
Tem algo da flora
que não habitamos.
Não aceita contato
senão o da pele
que é dura.
Oferece aos ossos
sua couraça.
Esse pêlo ruge
um idioma de pedras.
Quando o tiramos
a ferro fogo e mordidas
na ausência
é mais próximo.
AGOSTO
A lua ensina brancos
aos cachorros.
Branco diverso do dia
que se apruma.
Ao meio da estrada o desejo
aumenta o que abraça
e adverte meus olhos.
O que vejo é a capa
do que não se mostra.
POROS
Maio convida a passeios.
Tudo exposto como se alguém
deixasse a luz acesa.
Sorri um crime de besouros,
um filho chega à janela.
O homem antevê seu chapéu.
Nomes não chamam ninguém
mas costuram o mundo.
Se a ferrugem floresce,
abre incêndios nas calhas.
O que é permanência dura
Esse pêlo não pertence
ao corpo de agora.
Impossível conciliá-lo
com as luvas.
Tem algo da flora
que não habitamos.
Não aceita contato
senão o da pele
que é dura.
Oferece aos ossos
sua couraça.
Esse pêlo ruge
um idioma de pedras.
Quando o tiramos
a ferro fogo e mordidas
na ausência
é mais próximo.
AGOSTO
A lua ensina brancos
aos cachorros.
Branco diverso do dia
que se apruma.
Ao meio da estrada o desejo
aumenta o que abraça
e adverte meus olhos.
O que vejo é a capa
do que não se mostra.
POROS
Maio convida a passeios.
Tudo exposto como se alguém
deixasse a luz acesa.
Sorri um crime de besouros,
um filho chega à janela.
O homem antevê seu chapéu.
Nomes não chamam ninguém
mas costuram o mundo.
Se a ferrugem floresce,
abre incêndios nas calhas.
O que é permanência dura
um eclipse.
SEDA
Recordo uma porta
não pelos ruídos.
Mas pelas dobradiças
que deambulam
em nós.
Alguém ruge sua vez.
O quadro geral da música
se transforma,
os ouvidos também.
E tudo à volta
onde dormiam os gatos.
Recordo uma porta
não pelos ruídos.
Mas pelas dobradiças
que deambulam
em nós.
Alguém ruge sua vez.
O quadro geral da música
se transforma,
os ouvidos também.
E tudo à volta
onde dormiam os gatos.
EU RAIMUNDO BARBOSA DE AZEVEDO
DEITO TARDE ACORDO CEDO
DO OFÍCIO
O que pode curar não é raiz
mas o nome
moradia dos remédios.
mas o nome
moradia dos remédios.
Fios enterrados querem sol
uma agressão de pássaro.
uma agressão de pássaro.
Eu o que amasso não são raízes.
As letras de curar dissolvem
partes sofridas do corpo
dizem aos males adeus.
partes sofridas do corpo
dizem aos males adeus.
Minha virtude
foi aprender leitura.
A fama de curador é por acaso
sou mais é ledor.
foi aprender leitura.
A fama de curador é por acaso
sou mais é ledor.
FARMÁCIA DICIONÁRIO
A cura torna evidente
as ruínas
não tira a dor mostra o osso.
Não traz alívio fisga o brilho.
Melhor remédio
entende na paisagem
os incêndios.
Não cura não mata
como lagarto que mudasse
seu retrato.
Tem de ser o afago
que depurando
apurasse
a saúde na sua doença.
A cura torna evidente
as ruínas
não tira a dor mostra o osso.
Não traz alívio fisga o brilho.
Melhor remédio
entende na paisagem
os incêndios.
Não cura não mata
como lagarto que mudasse
seu retrato.
Tem de ser o afago
que depurando
apurasse
a saúde na sua doença.
NÃO-RECEITAS
Cerveja do campo rima os rins
mas a vida não é sem ritmo?
Cipó cainana mata reumatismo
e não se morre para agradar
o destino?
Folha santa tira dor de cabeça
quem tira o santo da guerra?
Raiz cinco chagas ordena o coração
o amor sabe linha reta?
João Burangui afina os dentes
são espessas nossas vontades?
Tantos males seus benefícios
raízes faltam
valem os bichos.
Mocotó de veado
e fel de pato amansam os nervos.
Sorte não sermos eternos
nem passageiros.
Cerveja do campo rima os rins
mas a vida não é sem ritmo?
Cipó cainana mata reumatismo
e não se morre para agradar
o destino?
Folha santa tira dor de cabeça
quem tira o santo da guerra?
Raiz cinco chagas ordena o coração
o amor sabe linha reta?
João Burangui afina os dentes
são espessas nossas vontades?
Tantos males seus benefícios
raízes faltam
valem os bichos.
Mocotó de veado
e fel de pato amansam os nervos.
Sorte não sermos eternos
nem passageiros.
QUASE-RECEITAS
Aqui se cura e se adoece.
Que alegria atrasar
os relógios do fim.
Eu faço é virar meu tacho.
Depurar o depurativo
dizer que se perdem
as idéias do mato.
Eu Raimundo
Barbosa de Azevedo
receito como se escrevesse.
Quem vira a cabeça
das coisas
entende o meu ofício.
Que alegria atrasar
os relógios do fim.
Eu faço é virar meu tacho.
Depurar o depurativo
dizer que se perdem
as idéias do mato.
Eu Raimundo
Barbosa de Azevedo
receito como se escrevesse.
Quem vira a cabeça
das coisas
entende o meu ofício.
PEIXES
Água tem espécies.
Nenhuma como essa
onde os seres
são espessos.
Um corpo aprecia
o rio sob a pele
e mergulha quando
todo ele ferve.
Peixes roxos.
Parecem presos
na cela de membros
mas na idéia o rio
oceano avança.
Água tem espécies.
Nenhuma se resolve
sem combater
o seu deserto.
Água tem espécies.
Nenhuma como essa
onde os seres
são espessos.
Um corpo aprecia
o rio sob a pele
e mergulha quando
todo ele ferve.
Peixes roxos.
Parecem presos
na cela de membros
mas na idéia o rio
oceano avança.
Água tem espécies.
Nenhuma se resolve
sem combater
o seu deserto.
________________________________________________________________________________________________________
Estes poemas foram extraídos de:
PEREIRA, Edimilson de Almeida. As coisas arcas: obra poética 4.
Belo Horizonte: Mazza Edições, 2003.
![]() |
Edimilson de Almeida Pereira é poeta, ensaísta, professor titular de literatura brasileira na UFMG, especialista em antropologia, cultura popular e religiosa.
Comentários
Postar um comentário