Autopromoção segundo Agatha Christie

por Jean Pierre Chauvin 
Professor da Escola de Comunicação e Artes da USP



“Não temos como viver sempre à altura
de nosso nome”* (Agatha Christie)


No breve ensaio em que se propõe a “entender” o “sucesso comercial” de alguns best-sellers, Sigfried Kracauer (2009, p. 109) pressupunha que “As transformações nas estruturas econômicas que ocorrem no presente afetam, sobretudo, a antiga classe média, incluindo a pequena burguesia. Esta classe, outrora portadora da cultura burguesa e braço principal do público leitor, se encontra em um estado próximo da dissolução”.

Invoco a reflexão do arquiteto e jornalista alemão para me acercar de A Noite das Bruxas, um dos derradeiros romances de Agatha Christie. Publicado em 1969, Hallowe’en Party reúne, pela última vez, a escritora Ariadne Oliver (espécie de alterego da autora) e Hercule Poirot, o detetive genial e cheio de si, que inspira a desconfiança alheia por estar mais velho e ser estrangeiro.

Se nas obras mais conhecidas da Rainha do Crime, as tramas começam bem e prendem a atenção do leitor, sucede algo diferente por aqui. A Noite das Bruxas começa com uma ruidosa festa de crianças e jovens (os “maiores de onze”), conduzidos por um grupo de mulheres que têm o condão do autoritarismo, disfarçado pela eficiência.

Ariadne Oliver é anunciada nas primeiras linhas. A célebre autora de romances com títulos de gosto questionável fora convidada para acompanhar a celebração do Halloween em uma cidadezinha inglesa – cenário recorrente nos romances de Christie. Essa reunião de personagens, às páginas iniciais do romance, pode provocar alguma confusão de nomes no leitor, especialmente se não estiver habituado a outras obras da autora.

Isso nos autorizaria supor que Agatha Christie pressupunha contar com um colegiado nada desprezível de leitores acostumados ao desfile de numerosos tipos. Àquela altura (1969), raros seriam aqueles que teriam se aproximado deste romance sem ter folheado O Assassinato de Roger Acroyd (1926), Assassinato no Expresso do Oriente (1934) ou O Caso dos Dez Negrinhos (1939), dentre outros.

Como dizia, há um “ruído” na narrativa: indício da habilidade da narradora em materializar o ambiente que descreve. Em meio às brincadeiras que transcorrem durante a festa (o que explica o título em inglês do romance), uma garota é afogada no balde de pesca, cheio de maçãs.

Transcorrida a cena trágica, uma estabanada Ariadne Oliver telefona para seu entediado amigo belga e pede, em visita a ele na mesma noite do crime, que intervenha na solução do assassinato. Hercule Poirot deixa seu confortável e tépido apartamento em Londres para se meter no monte dos pinheiros e na floresta da pedreira, a machucar os sensíveis pés e macular os sapatos envernizados.
O leitor conhece a estrutura dos livros de Christie. Confirmam-se certos procedimentos. Constatado se tratar de um crime, o método de Hercule Poirot consiste em entrevistar todos aqueles relacionados, de alguma forma, com o episódio que investiga. No caso da menina Joyce Reynolds, isso significa entrar em contato com mais de uma dezena de sujeitos quase todos caricatos: uns para o lado do racionalismo extremo, personificado na sra. Rowena Drake; outros, voltados para a instabilidade emocional, como é Judith Butler.

O leitor esteja prevenido de que não se trata de uma obra-prima. Quem ler o conjunto da obra christieana perceberá que, salvo honrosas exceções, o melhor do que ela escreveu está entre as décadas de 1920 e 1950. Isso não significa que estejamos diante de um romance policial que se possa desprezar. No entanto, a trama não empolga tanto quanto as célebres histórias que ela fora capaz de engendrar.

Recapitulando, a narrativa começa superpovoada, ruidosa. De súbito, a festa termina com a morte por assassinato de uma pré-adolescente e, instigado por Ariadne Oliver, o genial Hercule Poirot recorre à parceria com o também aposentado inspetor Spence e a irmã deste (moradores da localidade) para deslindar o mistério.

O que isso quer dizer? Que há muito pouco de “noite”, “festa” e de “bruxas”, no romance. O fator sobrenatural ou herético, anunciado pelo título do livro, não corresponde à postura das personagens, tampouco se refere aos ambientes que elas frequentam. O único fator a sugerir algum vínculo entre a morte – argumento-chave do romance detetivesco – e o Halloween é que se trata de um crime ambientado nos minutos finais de uma festa temática, a sugerir que se tratasse de uma convenção “de bruxas”.

Isso nos permite cogitar as estratégias utilizadas pela autora (e editora responsável) para, entre outras coisas, captar a maior atenção do público. Num país de forte tradição cristã, como a Inglaterra, decerto a referência cultural aos Estados Unidos não só chamou a atenção dos britânicos (e dos europeus, de um modo geral), mas também dos norte-americanos, que incrementavam as estatísticas de vendas havia décadas.

Afora o título do livro remeter a um tema atraente (embora nada decisivo para a condução da história e resolução do crime), outra estratégia de merchandising literário foi empregada em A Noite das Bruxas. No espaço de onze, dos vinte e sete capítulos do romance, as personagens aludem a quatro obras da própria escritora, a evocar os êxitos investigativos (e comerciais) do passado.

A primeira referência extradiegética**  (ou seja, exterior ao enredo) acontece nas páginas iniciais. A futura vítima, Joyce Reynolds, tagarela com Ariadne Oliver: 

Joyce, uma menina robusta de treze anos, pegou o cesto, deixando cair duas maçãs, que rolaram e foram parar aos pés da sra. Oliver, como que refreadas pela mão de uma feiticeira.
– A senhora gosta de maçãs, não gosta? – perguntou Joyce. – Li que a senhora gosta, ou talvez tenha ouvido na televisão. A senhora escreve contos policiais, não escreve?
– Escrevo – respondeu a sra. Oliver.
– Deveríamos ter pedido para a senhora preparar alguma coisa relacionada a assassinatos. Ter um assassinato na festa hoje a noite e pedir para as pessoas desvendarem o caso.
– Não, obrigada – disse a sra. Oliver. – Nunca mais (CHRISTIE, 2017, p. 11 – grifos meus).

Provavelmente, Agatha Christie supusesse que seus leitores entendessem a resposta enfática de Ariadne Oliver ao convite de Joyce Reynolds. Com o “Nunca mais”, dirigido à garota, a autora de papel aludia ao romance A Extravagância do Morto (1956), ocasião em que ela fora convidada para encenar um assassinato numa rica casa de campo. Por sinal, a dupla Poirot/Oliver também fora acionada. Aliás, recomenda-se ao leitor que (re)leia aquele romance, à cata de pistas para a resolução do mistério deste…

A autopromoção continua. Não bastasse referir-se a sua própria obra, nas primeiras páginas, Agatha Christie faz nova menção à aventura anterior, três capítulos a frente: 

– Ah – fez Poirot, ela não pediu dessa vez que a senhora elaborasse um caso de assassinato para ser desvendado?
– Graças a Deus, não – respondeu a sra. Oliver. – O senhor acha eu voltaria a fazer tal coisa? (CHRISTIE, 2017, p. 29 – grifos meus).

Estamos apenas no começo de nossa jornada crítico-investigativa. Repare-se que, imediatamente após o diálogo com a amiga Ariadne, Poirot dirige-se ao Monte dos Pinheiros, em Woodleigh Common, onde visita um antigo parceiro na resolução de outro crime. Após celebrarem a alegria do reencontro, muitos anos depois, Poirot e Spence tornam ao assunto que os aproximara: 

– Ainda moro em Londres. Vim para cá a pedido de uma amiga, a sra. Oliver. Você se lembra dela?
Spence levantou a cabeça, fechou os olhos e parecia refletir.
– Sra. Oliver? Acho que não.
– Ela é escritora. Escreve romances policiais. Você a conheceu na época em que me persuadiu a investigar o assassinato da sra. McGinty. Lembra-se da sra. McGinty? (CHRISTIE, 2017, p. 38 – grifos meus).

Encerrada o diálogo inicial com o inspetor Spence – há nova alusão a um crime do passado investigado por ambos (A Morte da Sra. McGinty foi publicado em 1952) –, o detetive retorna à tradicional escola Meadowbank, onde solucionara uma sequência de crimes que embalaram Um Gato entre os Pombos, romance de 1959:

Poirot olhou para o The Elms e reconheceu o lugar.
Foi recebido e prontamente conduzido à sala da diretora por uma pessoa que julgou ser uma secretária. A srta. Emlyn levantou-se de sua mesa para cumprimentá-lo.
– Um prazer conhecê-lo, sr. Poirot. Ouvi falar no senhor.
– Muita gentileza de sua parte – disse Poirot.
– Uma antiga amiga minha, a srta. Bulstrode, ex-diretora da Meadowbank, falou-me a seu respeito. O senhor se lembra dela? (CHRISTIE, 2017, p. 82).

A entrevista na escola serve de pretexto para que se inicie o décimo capítulo. Eis que, na seção seguinte – provavelmente a mais enfadonha de A Noite das Bruxas – o detetive, em monólogo na pedreira, enuncia as aventuras que viveu em Os Trabalhos de Hércules (uma coletânea de contos editada em 1947): 

O que estou vendo?, pensou Poirot. Será resultado de um encantamento? Pode ser. Neste lugar, tudo é possível. É um ser humano que estou vendo ou será… o que poderia ser? Sua mente voltou-se para algumas aventuras do passado que ele batizara de Os Trabalho de Hércules (CHRISTIE, 2017, p. 97).


Desta página em diante (chegamos ao décimo primeiro capítulo) não haverá menção a alguma prosa anteriormente publicada pela escritora, nem por intermédio de seus protagonistas, nem de seus coadjuvantes. Mas o mesmo recurso de autorreferenciação foi empregado em diversos romances de Agatha Christie, especialmente a partir da década de 1960.

Afinal, o que teria levado uma escritora tão bem-sucedida - com renome, cifras, traduzida para dezenas de países e crescentes índices de vendas, além de adaptações para o tablado e o cinema -, a recorrer a tais expedientes? Seria um teste de reconhecimento para seus leitores cativos? Ou estratégia agressiva de marketing, sugerida por seus agentes literários para remeter leitores novos a obras velhas? Ou, ciente da maior proximidade da morte, seria uma tentativa de reverenciar e se despedir das boas histórias que escrevera anos atrás?

Para os leitores que porventura não demandem mais do que a possibilidade de se entreter com histórias detetivescas, talvez essa questão soe um tanto preciosista. Mas, se levarmos o romance policial a sério; se o consideramos como matéria digna de estudo, com vistas a salvaguardar as suas qualidades estéticas; se desejamos estimular a leitura de novos aficionados do gênero etc, talvez valha a pena cogitar se a autorreferenciação, que tanto criticamos no mundinho escolar e acadêmico, também possa ser questionada nas obras de ficção.

Autopromoção: aspecto mercantilizável da literatura, também por isso chamada “de massa”? Certamente haverá cabimento nessa ressalva, que é pouca, diante de uma escritora de nossa predileção. Num comentário, feito este, ainda caberiam o meio e o muito. Mas, alto lá! Isso não tem muito a ver com (des)gosto pessoal. Não seria justo, nem lógico, detratar aquela senhora que nos faz companhia encadernada desde a pré-adolescência. 

Donc, bon voyage. 

Notas:
* A Noite das Bruxas, p. 109 (fala da personagem Judith Butler).

** “Por um lado, encontramos o Narrador intradiegético. Trata-se de um narrador que é simultaneamente personagem, no mundo ficcional. Se é personagem e narrador da sua própria história, é um narrador homodiegético, como acontece com os narradores em Citizen Kane. Se a personagem-narrador não pertence à história que está a narrar, será um narrador heterodiegético. Por outro lado, existe o Narrador extradiegético. Será o narrador externo, que regula registos visuais e sonoros e se manifesta através de códigos cinematográficos e distintos canais de expressão e não através de um discurso verbal” (CARDOSO, 2003, p. 58).

REFERÊNCIAS

CARDOSO, Luís Miguel. “A Problemática do Narrador: da Literatura ao Cinema”. Lumina [UFJF] Juiz de Fora (MG), v. 6, n. ½, 2003, pp. 57-72.
CHRISTIE, Agatha. A Noite das Bruxas. Trad. Bruno Alexander. Porto Alegre: L&PM, 2017.
KRACAUER, Siegfried. “Sobre livros de sucesso e seu público”. In: _____. O Ornamento da Massa. Trad. Carlos Eduardo J. Machado; Marlene Holzhausen. São Paulo: Cosac Naify, 2009, pp. 105-116.

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