Cemitério Lunar - um poema inédito de Renan Nuernberger

por Rafael Tahan


Este espaço é reservado para criação literária e leva o título de lavradouro, caixa baixa: neologismo cuja arquitetura, pensada pelo poeta Jaci Bezerra (1968, Murici AL), concentra dois vetores semânticos frequentemente associados à poesia. 1: lavra: lavrar, lavoura, lavrador  & suas adjacências: trabalho manual, feitura: poíēsis (ποίησις); 2: d'ouro, corruptela para de ouro, termo cujo eco remonta o passado glorioso do mito (l'âge d'or): e seu antigo ideal : a perenidade: exegi monumentum. Tensionando ofício e permanência fissuramos o significante (núcleo duro do vocábulo); uma vez atomizada, a palavra converte-se em valise: do lastro semântico vemos surgir a ruína semiótica; se por um lado  negamos a sua permanência, por outro  revelamos a possibilidade: menos um pilar, mais um tijolo.
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CEMITÉRIO LUNAR

tudo aqui é luzidio:
ecoa a noite estrelada no blecaute.

o tempo estanca num momento qualquer,
com um astro intruso
(não sei se osso, não sei se mármore).

meu olho é lasso, mal enxerga a Lua,
deserto branco de matéria-enigma,               
cujo solo,
(para nós) inédito, inóspito,
contém apenas o fóssil dos passos
de astronautas
           
(haverá outra maneira
de habitá-la?).

rarefeito, permaneço
consciente, apesar de toda a falta,
vislumbrando,
  entre os vãos de sua máscara,
outras formas, também vãs, de obtê-la.

mundo morto, já conheço teu percurso
em cada nova máquina que inventas
(guiado pelas mãos de outros poetas,
conheço, palmo a palmo, esses destroços).

banqueiros cobram juros, estou pleno.
soldados seguem ordens, estou calmo.
nenhuma ilusão tomo de empréstimo           
para suportar a dor que nos faz órbita.

um dia, toda angústia será pedra
e os corpos, que hoje oprimem uns aos outros,
serão todos uma outra substância.

tudo que é bênção, tudo o que é praga,
o que há de mais patético
ou mais cálido
estará humanamente enterrado
e ninguém celebrará seus cristais mudos.

o amor será um pulso elétrico. o que era aço
talvez só reste magma. as grandes metrópoles
virarão poeira. aviões e mísseis, fumaça.
o oceano engolirá o que era esgoto. a luz
do Sol apagará o que era arte. o vidro voltará
a ser areia. toda a ciência voltará a ser mistério,

como nossa existência, soterrada.

e ali estará o escudo inerme,
que chamei de Lua, nossa lápide,
observando, impassível como sempre
(agora), sem gramática,
os largos movimentos de combate
entre a altivez do fogo
e a fluidez da água.

mas eu te adivinho, geração futura,
neste chão infértil de carvão salgado,
como coisa insólita, sem nome ou data
(não serás planta, nem serás inseto): frágil
forma de vida
a dissolver-nos
numa outra (sonho, melhor) comunidade.

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Renan Nuernberger (1986) é doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo. Como poeta, publicou Mesmo poemas (Sebastião Grifo, 2010) e Luto (Patuá, 2017), ambos com apoio do ProAC da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo. Como crítico, foi responsável pela antologia Armando Freitas Filho (EdUERJ, 2011) para a coleção Ciranda da Poesia e organizou, em parceria com Viviana Bosi, a reunião de ensaios intitulada Neste instante: novos olhares sobre a poesia brasileira dos anos 1970 (Humanitas, 2018)

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