Ingeborg Bachmann e a utopia da nova linguagem

Matheus Guménin Barreto*
Doutorando em Letras na FFLCH-USP


Ingeborg Bachmann (1926-1973) foi uma poeta, romancista, contista, autora de peças radiofônicas, ensaísta, libretista e tradutora austríaca; tida como uma das mais destacadas autoras germanófonas do século XX.

Segundo Hans Höller em Ingeborg Bachmann (2009), essa obra literária a colocou muito cedo no centro das atenções de críticos e dos demais autores de ou em Viena, que em pouquíssimo tempo saudaram sua poesia como um dos pontos altos da produção em todo o ambiente germanófono do pós-guerra: em 1952, aos apenas 26 anos, Ingeborg Bachmann é convidada a participar daquele que é considerado o mais influente círculo literário da época, o Gruppe 47. Em 1953, o grupo lhe concede seu prêmio anual e, assim, aos 27 anos Bachmann passa a constar como “representante da nova literatura ‘alemã’” (cf. Höller, 2009, p. 74), torna-se meses depois capa da revista Der Spiegel (18 de agosto de 1954) e tem seus poemas chamados de “novas Elegias Romanas”[1] (Idem, p. 75). Nas duas décadas seguintes, até sua morte prematura, Bachmann recebe ainda diversos outros prêmios de relevo, entre eles o Prêmio Georg Büchner, em 1964.

Bachmann publica apenas dois livros de poemas, Die gestundete Zeit (1953) e Anrufung des Großen Bären (1956). Deixou, no entanto, numerosos poemas que apenas após sua morte – junto dos poemas de adolescência – seriam publicados, e que somam por volta de um terço de sua obra poética tal qual reunida até o momento[2]. Além dos livros de poemas, publica as coletâneas de contos Der dreißigste Jahr (1961) e Simultan (1972), o romance Malina (1971), os libretos Der Prinz von Homburg (1960) e Der junge Lord (1965) para óperas do compositor Hans Werner Henze (1926-2012), traduções de Thomas Wolfe (1952) e de poemas de Giuseppe Ungaretti (1961), além de diversos ensaios, discursos e peças radiofônicas. Deixou obras (como os fragmentos de romance Der Fall Franza e Requiem für Fanny Goldmann, ambos parte de um complexo de romances inacabado, o Todesarten) que apenas após sua morte se publicaram. O espólio da autora chega a 6.000 páginas.

Após sua morte em 1973, num incêndio possivelmente causado por um cigarro seu em Roma, a fama de Ingeborg Bachmann só aumentou e se diversificou: seus textos em prosa, relegados por críticos da época como obra menor de uma poeta maior, ganham mais e mais leitores desde a publicação póstuma de sua obra ‘completa’[3]. A atual avaliação da autora por parte da crítica germanófona ou internacional pode ser resumida no que o crítico americano Peter Filkins escreveu já em 1991: “(...) equal to the best of Virginia Woolf and Samuel Beckett.” (Filkins, 1991).

Até o momento (junho de 2018) pude encontrar publicadas em português poucas obras da autora (tanto no Brasil, quanto em Portugal) a saber: O tempo aprazado (tradução de Judite Berkemeier e João Barrento. Lisboa: Assírio e Alvim, 1993), Ingeborg Bachmann (tradução de Vera Lins. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2013), Trinta Anos (tradução de Leonor Sá. Lisboa: Relógio d'Água, 1988), Malina (tradução de Ruth Röhl. São Paulo: Siciliano, 1993). No início de 2017, publiquei duas seleções de poemas da autora: alguns na antologia Lira argenta (São Paulo: Selo Demônio Negro, 2017) e alguns na plaquette Dito ao anoitecer (São Paulo/Lisboa: Selo Demônio Negro, Editora Hedra e Douda Correria, 2017).[4] Quanto às traduções de poemas publicadas em revistas especializadas e/ou na internet, pude encontrar apenas as seguintes: quatro minhas na Revista Cisma da USP e outras seis na Revista Escamandro; uma por Claudia Cavalcanti na Revista Qorpus da UFSC; três por Adelaide Ivánova na Revista Modo de Usar; e quatro assinadas por Sephi Alter e Renato Suttana no site “O arquivo de Renato Suttana”.













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A poesia de Ingeborg Bachmann é, de modo geral, marcada por um encontro (ou melhor: um embate) entre o arcaico e o moderno, entre o fixo e o livre, entre a utopia e a realidade, entre luz e sombra – em outras palavras, é uma poesia em chiaroscuro. Pouco ou nada há de sereno em seus poemas: são obras construídas numa estruturada desestruturação ou desestruturada estruturação, de modo que parece mesmo quase sempre atacar as estruturas sobre as quais versa: do amor, da organização social, do mito do humano bom. A poesia de Ingeborg Bachmann parece nos lembrar da passagem feroz do tempo e da semente de horror que viceja mesmo no campo mais sereno. É poesia de advertência contra nós mesmos.

O tempo postergado [o primeiro livro de poemas da autora] dá o tom dos temas literários no início dos anos cinquenta: a chance não aproveitada de um novo começo para a sociedade, o ameaçador ‘ainda’ e ‘de novo’. Sem ilusões [...]. (Höller, 2009, p. 77)

Tal desestruturação, tal apontar para o “ameaçador ‘ainda’ e ‘de novo’”, reflete-se também no próprio material linguístico da autora: Bachmann empreende um desestruturar da linguagem tal qual a utilizamos no dia a dia. Relaciona programaticamente palavras que nunca estariam juntas: liga, por exemplo, palavras tradicionalmente poéticas a palavras técnicas do mundo dos bancos (“gestundete Zeit” [Bachmann, 2011, p. 47] – “tempo postergado”) ou das metalúrgicas (“Es harrt der Blasbalg des Meisters [...]” [Idem, p. 49] – “Vela pelo/aguarda o fole do mestre”); usa verbos e preposições de modo atípico (“Wasser weiß zu reden” [Ibidem, p. 120] – “Sabe água discursar/falar”), aparentemente confuso; retoma palavras já consideradas arcaicas (“Antlitz” (Idem, p. 42], “harren” [Ibidem, p. 49] – “velar”, “fronte”).

O afastamento da linguagem do seu uso corriqueiro é, mais do que simples traço de estilo, uma atitude programática, como se pode notar a partir da leitura das Palestras de Frankfurt sobre Poética (1959/60).

As palestras (ou “aulas”, ou “leituras”) de Frankfurt são de inenarrável importância a todo aquele que pretende estudar a poesia de Bachmann e a poesia germanófona do pós-guerra – e mesmo as outras poéticas ocidentais do período, creio. No entanto, limito-me a apenas reproduzir aqui breves comentários de Hans Höller, de Kurt Bartsch e de Matthias Bormuth acerca do ponto que mais interessa ao presente texto: a natureza utópica da linguagem de Bachmann. Assim, em Höller:


“Nas Palestras de Frankfurt acerca de Poética, apresentadas sob o título Questões da poesia contemporânea, Ingeborg Bachmann fala sobre a tarefa do poeta de representar seu tempo e apresentar algo ao qual seu tempo ainda não conseguiu chegar; sobre sua utopia da linguagem, que implica uma ética do escrever e não separa arte e moral uma da outra – Nenhum mundo novo sem língua/linguagem nova; [...]”. (Höller, 2009, p. 107)


A utopia da linguagem/língua[5] bachmanniana à qual Höller se refere acima é um ponto central em sua poética: através dos meios linguísticos, a poeta procura “[...] não apenas transformar em poesia o que é cotidiano, mas sim apontar para o que ainda não existe nele.” (Bormuth, 2004).

Amparada pela leitura de filósofos como Kant, Heidegger e Wittgenstein (afinal, cabe lembrar que Ingeborg Bachmann era doutora em Filosofia com tese defendida acerca da obra de Heidegger) e também de outros escritores, como Robert Musil e Paul Celan, Bachmann busca a concepção de uma nova linguagem dentro ou além da língua alemã, uma linguagem capaz de corporificar e simultaneamente criar a utopia, sendo por ela também corporificada e criada – “Nenhum mundo novo sem linguagem nova”, como citado por Höller a partir do conto “Alles”.

A “linguagem ruim” (schlechte Sprache) ou “linguagem vigarista” (Gaunersprache), que pudera sustentar os horrores do nazismo, alguns anos antes, e da Primeira Guerra; que pudera, em sua assepsia assustadora, montar um amplíssimo sistema burocrático de extermínio; essa linguagem não podia ser a linguagem da poesia. Ao mesmo tempo, para desespero do artista, ela é a única possível. Nesse impasse, no entanto, o artista pode presumir que uma linguagem que encarnasse e produzisse tais horrores deveria, então, supor uma outra linguagem, oposta, uma “linguagem justa/boa” (gute Sprache), que poderia por sua vez encarnar e produzir uma vida outra: justa, forte, bela, na qual o mais íntima e inerentemente humano seria realidade dentro da arte (cf. Bartsch, 1988); e que, por definição, seria buscada pelo artista, mas jamais ou apenas de leve atingida.

Só pode haver o esforço em direção a tal linguagem. Os esforços em direção a essa linguagem boa deveriam ser, eles mesmos, a poesia. A poesia seria o esforço de dizer o que é indizível e de acordar de fato as pessoas de seu sonambulismo coletivo. Essa a utopia da linguagem de Ingeborg Bachmann.

Trata-se do processo descrito pela autora em suas Palestras de Frankfurt como algo para o qual é preciso ter


“[...] uma mente [atenta à] realidade ainda não nascida, ou seja, à possibilidade. [...] é preciso esforçar-se contra a linguagem ruim que descobrimos à nossa volta, [é preciso esforçar-se] em direção àquela linguagem que ainda não regeu, mas que rege nossos pensamentos e que nós buscamos.” (Bachmann, 2011 b, p. 94).

Ainda, partindo da afirmação de Simone Weil – que Bachmann admirava – de que “O povo precisa de poesia como precisa de pão”, a autora formula de modo lapidar que:


“Esse pão precisaria estalar entre os dentes e redespertar a fome, não saciá-la. E essa poesia precisaria ser acre de reconhecimento e amarga de saudade para atingir o sono das gentes. Porque nós dormimos, somos aqueles que dormem de medo de precisarmos apreender ao mundo e a nós mesmos.” (Idem)


Na busca que é já amarga por pressentir seu fracasso, já afiada por prever o essencial escapando entre os dedos: justo aí está a poesia de Ingeborg Bachmann. No chiaroscuro entre potência e realidade, entre desejo e concreto; à sombra do fracasso da utopia.


Referências utilizadas 

Bachmann, Ingeborg. Sämtliche Gedichte. München: Piper, 2011.
Bartsch, Kurt. Ingeborg Bachmann. Stuttgart: Metzler, 1988.
Bormuth, Matthias. Utopie und Sprache bei Ingeborg Bachmann. Parapluie, n. 19, verão de 2004. Disponível em: https://parapluie.de/archiv/worte/bachmann/ (acesso em 26 de dezembro de 2017).
Filkins, Peter. The Murderer in Her Dreams. The New York Times, New York, 10 de fevereiro de 1991. Sunday, Late Edition – Final. Disponível em: https://www.nytimes.com/books/99/10/03/nnp/bachman-malina.html (acesso em: 14 de fevereiro de 2016)
Höller, Hans. Ingeborg Bachmann. Letzte unveröffentlichte Gedichte, Entwürfe und Fassungen. Edition und Kommentar Hans Höller. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1998.
_____________. Ingeborg Bachmann. 5. Aufl. Rowohlt, Reinbek, 2001.

Notas ao texto



** Texto retirado e revisado da dissertação de mestrado O aspecto rítmico na tradução de cinco poemas de Ingeborg Bachmann, defendida na FFLCH-USP em 2018, que pode ser acessada clicando aqui.

[1] Série de poemas de Goethe.
[2] Tenho como base o volume Sämtliche Gedichte (München, 2011).
[3] Mais sobre a incompletude das primeiras edições da obra completa de Bachmann: vide Ingeborg Bachmann de Kurt Bartsch (Stuttgart: Metzler, 1988).
[4] Há também, de modo muito esparso, contos, excertos e poemas soltos publicados em outras antologias ou revistas, como por exemplo o “Ondina parte” (In: Antologia do moderno conto alemão, tradução de Iris Strohschoen e Betty Margarida Kunz. Porto Alegre: Globo, 1969). 
[5] Usarei daqui em diante o termo ‘linguagem’, mas leia-se sempre tanto ‘língua’ quanto ‘linguagem’ para o termo ‘Sprache’.



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