Paraizo-Paraguay: um excerto do romance inédito de Marcelo Labes

por Rafael Tahan



Este espaço é reservado para criação literária e leva o título de lavradouro, caixa baixa: neologismo cuja arquitetura, pensada pelo poeta Jaci Bezerra (1968, Murici AL), concentra dois vetores semânticos frequentemente associados à poesia. 1: lavra: lavrar, lavoura, lavrador  & suas adjacências: trabalho manual, feitura: poíēsis (ποίησις); 2: d'ouro, corruptela para de ouro, termo cujo eco remonta o passado glorioso do mito (l'âge d'or): e seu antigo ideal : a perenidade: exegi monumentum. Tensionando ofício e permanência fissuramos o significante (núcleo duro do vocábulo); uma vez atomizada, a palavra converte-se em valise: do lastro semântico vemos surgir a ruína semiótica; se por um lado  negamos a sua permanência, por outro  revelamos a possibilidade: menos um pilar, mais um tijolo.

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Marcelo Labes, autor de [enclave] Patuá, 2017 (entre outros 5 livros), é um artista que merece nota. Depois de terminar seu último romance Paraízo-Paraguay, obra de feição histórico-literária, o autor resolveu se aventurar no inóspito mercado editorial brasileiro, com a seguinte ideia: publicar livros sem ônus para autores. A exemplo de outras micro-editoras que andam surgindo com uma proposta menos impessoal de editoração, a caiaponte edições pretende romper com os processos rotinizados de editoraçãoestreitando a relação editor-autor a fim de pensar a plataforma que veicula os textos -os livros- como parte da manifestação artística, buscando, nesse diálogo, um melhor formato de publicação para cada artista. A ideia é que a editora saia do papel em Março, já com a publicação de mais dois outros romances: "Lugares Ogros", de Telma Scherer; "Nuvem Colona", de Gustavo Matte  além de Paraízo-Paraguay. Os livros encontram-se em pré-venda no endereço:  http://catarse.me/caiaponte.


Confira um trecho inédito de Paraízo-Paraguay.


A fábrica era outro mundo para o jovem Hans. Como fora contratado — e não tinha mesmo porque não ser, pensava — começou o treinamento na semana seguida à da entrevista. Iria trabalhar na tinturaria ou na tecelagem, tudo dependia de seu desempenho no tear de treino. Hans, que não tinha o costume de se afastar tanto de casa, nunca tinha visto tanta gente reunida num mesmo lugar. À hora do almoço, deslumbrava-se com a saída dos operários em direção ao refeitório. A rua era fechada para que centenas de operários deixassem os prédios da indústria em direção ao outro lado da rua, no prédio onde faziam as refeições. Eram homens, mulheres, alguns jovens como ele: a fábrica, ao contrário do que se possa pensar, não era prisão. Era dentro dela que um jovem operário tomava conhecimento do mundo, mesmo que o mundo ficasse tão longe dos limites daqueles muros.

— Hoje vamos receber o pagamento, disse-lhe o pai.
— Que bom, meu velho, disse Hans, sem calcular a intimidade, — Eu preciso mesmo comprar uma magrela pra mim.
O anúncio de Hubert ao filho era, na verdade, uma censura. Se aquele era dia de pagamento, era Hubert quem receberia o salário. Salários. Acompanhou o filho ao Departamento de Recursos Humanos, pagamento era realizado em dinheiro e pessoalmente a cada funcionário. Disse a Hans: “Fica aqui e me espera”. O homem entrou porta adentro, não demorou-se mais que alguns minutos, e ao sair mandou o filho entrar. “Agora vai, te espero aqui”. Hans saltou do banco de madeira onde havia se recostado e dirigiu-se saltitante em direção à sala estreita de onde sairia com o soldo referente a um mês inteiro de trabalho.
Ao sair, o jovem não teve tempo de prolongar o sorriso de orgulho que havia ensaiado tantas vezes para mostrar ao pai. Hubert estendeu-lhe a mão e sem palavra, apenas com o olhar, fez o jovem entender que o salário devia ser entregue.  O bolso solitário da camisa foi esvaziado e as notas postas uma a uma na mão do patriarca.
“Isso”, disse Hubert, sério. “Mês que vem, a mesma coisa, e assim por diante. Já é hora de tu me pagar o tanto que tu me deve”.
Hans, por sua vez, pensou palavras tortas em alemão, mas não as disse. Era sim um menino deslumbrado com a fábrica e sua gente, as moças, as bicicletas; sabia lidar melhor com os bichos do que com as pessoas, sim, ele sabia, mas não era burro. Não disse palavra feia ao pai, pois sabia o preço que teria um gesto de revolta como aquele. Melhor do que isso, agradeceu.
“Obrigado, pai. Obrigado por tudo!”
Na hora da janta deste dia, Olga não perguntou como havia sido o dia do filho. Não precisou fazê-lo, tinha ali o retrato do que acontecera estampado na sua frente: Hans envelhecido e frustrado, perguntando-se Por quê? Por quê?, e um Hubert embriagado: passara antes no boteco. Também para ela devia sobrar alguma coisa, pois há meses vinha pedindo ao marido que lhe arrumasse uns trocados para comprar tecido. “Preciso dum vestido novo para ir à igreja”, sussurrou ao marido, à hora de dormir.
“Amanhã vemos. Amanhã”.
Em seu quarto, Hans remoía palavras que não diria nunca. Ensaiava, assim, sua maneira de calar.E entendia para o que as palavras não serviam.


Este excerto foi extraído do romance inédito Paraízo-Paraguay de Marcelo Labes (c.11 pg. 125) com previsão de publicação para Março de 2019 pela caiaponte edições.

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Marcelo Labes nasceu em Blumenau-SC, em 1984, e hoje reside na capital do estado. É autor de Falações [EdiFurb, 2008], Porque sim não é resposta [Antítese, Hemisfério Sul, 2015], O filho da empregada [Antítese, Hemisfério Sul, 2016], Trapaça [Oito e Meio, 2016], Enclave [Patuá, 2018], O poeta periférico [Edição do autor, 2018] e Paraízo-Paraguay [no prelo]. Integrou a mostra Poesia Agora (edição carioca), em 2017. Tem poemas publicados em InComunidade, Mallarmagens, Literatura & Fechadura, Livre Opinião - Ideias em Debate, Ruído Manifesto, Enfermaria 6, Revista Lavoura e Revista Vício Velho. Edita a revista eletrônica ‘O poema do poeta’, onde publica originais manuscritos, esboços e rabiscos de poetas e ficcionistas

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