Relato de um experimento pedagógico


por Caio Cesar Esteves de Souza,
Mestre em Letras e editor da Oficina Irritada

            Em janeiro de 2018, fui convidado pela Professora Lilian Jacoto para participar das Jornadas de Literatura Portuguesa da Universidade de São Paulo, compondo a mesa de abertura, intitulada “Qual cânone?”, ao lado do Professor Horácio Costa, também da área de Literatura Portuguesa da USP, e do pós-graduando Luciano Souza. Um pouco pretensiosamente, decidi discutir em minha fala como os currículos de Literatura Brasileira e Literatura Portuguesa da FFLCH privilegiavam as letras dos séculos XIX e XX, produzindo ativamente um desinteresse pelas letras anteriores ao romantismo, que se refletia na atitude dos alunos do curso de Letras em relação a essas outras práticas letradas, sobretudo a nível de pós-graduação. Foi uma experiência maravilhosa, que me permitiu refletir sobre o currículo do curso que me formou diretamente. Se essas falhas existiam nesse currículo, então elas também existiam em minha formação pessoal. Não me lembro bem se em forma de pergunta ou em um comentário nos corredores, alguém me disse que discordava do que eu havia proposto, porque julgava que o desinteresse dos alunos era prévio. “Ninguém quer ler essas coisas velhas”, foi o mote central do argumento. Era uma tese contra a qual eu não tinha como argumentar; decidi verificar se ela se aplicava. Este texto é um relato de um experimento pedagógico despretensioso que desenvolvi durante todo o ano de 2018 e seguirei desenvolvendo neste primeiro semestre de 2019.

            Procurei a Professora Maria Augusta da Costa Vieira, especialista nas letras espanholas do siglo de oro, poucas semanas depois do ocorrido e propus um projeto: montar um grupo de estudos exclusivamente com alunos ingressantes no curso em 2018, para a leitura em conjunto de textos canônicos dos séculos XIV ao XVIII, de várias tradições letradas. Pedi que ela fosse oficialmente a supervisora de nosso grupo, para que eu tivesse a quem recorrer em momentos de impasses pedagógicos – essa era a primeira vez que eu coordenava um grupo de calouros. Após receber um aval muito generoso da professora, fiz uma passagem em sala convidando esses alunos e tive a surpresa de receber 150 nomes e e-mails na lista de interessados – minha expectativa era conseguir montar uma turma de 10 alunos. Para resolver o problema da superlotação e do horário – evidentemente, nenhum horário seria bom para todas as 150 pessoas – adotei uma solução phármakon: propus que nossas reuniões ocorressem às sextas-feiras de manhã, em duas turmas, uma das 8h-10h, outra das 10h-12h. Como os calouros de letras não têm aulas às sextas, todos necessariamente tinham o horário livre; ao mesmo tempo, estariam abrindo mão do conforto de não precisar acordar cedo na sexta-feira para assistir aulas.

            Atingi o objetivo de diminuir esse grupo impraticável para cerca de 50 alunos, divididos nas duas turmas. No primeiro semestre, como eu ainda estava tentando aprender o ritmo ideal para as reuniões, nos centramos exclusivamente em um texto: a peça Macbeth, de Shakespeare. Lemos a peça verso a verso na tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos, cotejando-a com o texto em inglês sempre que necessário. A assiduidade dos alunos foi realmente surpreendente, e o nível das perguntas foi melhorando substancialmente durante o semestre. Aproveitei para ensinar alguns aspectos de retóricas e poéticas clássicas, do decoro da sociedade de corte, algumas divergências nas doutrinas protestantes do poder monárquico e nas doutrinas católicas, além de discutir aspectos de versificação e encenação daqueles textos. Fomos surpreendidos por uma greve dos funcionários da USP próximo ao fim do semestre, o que nos impediu de continuar as reuniões. Conseguimos, ainda assim, ter uma aula muito gentilmente ministrada pelo Professor John Milton, professor aposentado da área de inglês da FFLCH, sobre Shakespeare, o lugar social ocupado pelo teatro na Inglaterra dos séculos XVI-XVII e questões de métrica e tradução.

            Uma observação que pode ser interessante. Os alunos desse grupo de estudos tinham apenas uma contrapartida burocrática: a concessão de certificados semestrais de participação em nossas atividades, para que pudessem validar essas horas durante a sua licenciatura. Não oferecemos créditos ou bolsas. Ainda assim, mantivemos uma assiduidade surpreendente durante todo o primeiro semestre. No segundo semestre, parei de passar a lista de presença, para verificar se essa assiduidade poderia estar condicionada a uma espécie de vigilância burocrática. A ausência da lista não fez qualquer diferença na frequência dos alunos.

Na passagem para o segundo semestre, ao perceber a maturidade do grupo, decidi abrir mão do papel decisório sobre quais textos abordaríamos, e deixei que os alunos escolhessem como queriam seguir. Propuseram que começássemos com A Divina Comédia, de Dante Alighieri. Particularmente, nunca tinha lido o poema inteiro, então usei as minhas férias nessa leitura simultaneamente prazerosa e exaustiva. De volta ao grupo, selecionei trechos de cada um dos livros, para que pudéssemos passar pouco mais de um mês nessa obra monumental dando uma noção suficientemente introdutória das principais questões desenvolvidas ali, mas sem a pretensão de esgotar um texto tão extenso que poderia ser trabalhado durante o ano inteiro. Ao fim do mês, convidamos o Professor João Adolfo Hansen para uma aula pública sobre Dante e a Comédia, que lotou a maior sala do prédio das Letras, com alunos que iam do primeiro ano da graduação a doutores já formados.

Então, para a minha surpresa – e parcial desespero – os alunos propuseram que lêssemos livros de cavalaria. Eu não apenas nunca tinha tido aulas sobre esses livros, mas jamais tinha pessoalmente lido um deles por inteiro. Corri para realizar a leitura integral d’A Demanda do Santo Graal e de partes de Amadis de Gaula. Também li uma infinidade de artigos e capítulos de livros sobre cavalaria, amor cortês, divisão geopolítica da Europa durante a Idade Média, verossimilhança e maravilha etc. Passamos pouco mais de um mês lendo a história de Erec, na Demanda – agradeço ao Renato Razzino pela sugestão desse recorte, que realmente foi mais interessante do que eu originalmente havia previsto. Essa, no entanto, não foi a parte mais curiosa para mim. Tentando ver até que ponto os alunos embarcariam com interesse em meu experimento pedagógico – do qual, diga-se de passagem, todos estavam cientes, embora talvez não conhecessem a extensão – decidi propor que lêssemos um trecho da Chanson des Saisnes, escrito em picardo do século XII, em que Jean Bodel distinguia as 3 matérias da cavalaria. Devo lembrar que os alunos não leem francês moderno, nem tampouco estão acostumados com língua picarda medieval. Eu percebi que a dificuldade era proporcional ao interesse, e todos conseguiram seguir com a leitura, com o auxílio de dicionários e das minhas anotações prévias – que eu informava à medida em que eles faziam perguntas específicas sobre vocábulos ou estruturas gramaticais.

 Feliz em perceber esse interesse e capacidade dos alunos, propus a leitura do prólogo de Amadis de Gaula diretamente no espanhol do século XVI. Eu estava trabalhando como monitor da professora Maria Augusta em uma disciplina especificamente sobre esse período e percebi a imensa dificuldade com que alunos da habilitação em espanhol lidavam com a pontuação e as estruturas gramaticais dessa época. Imaginei que a reunião fosse ser um caos, mas os alunos foram surpreendentemente interessados e conseguiram ler em conjunto o texto. Tudo isso é feito evidentemente com muita dificuldade, mas a leitura flui ainda assim e é perceptível a satisfação desses alunos ao fim de uma reunião que impõe tantas dificuldades – da qual participam voluntariamente.

Por fim, em nossas últimas semanas os alunos propuseram como prosseguimento natural a leitura de Don Quijote, que é um mundo à parte. As leituras dos trechos foram feitas diretamente em espanhol, sem grandes dificuldades, e pudemos contar com a presença da Professora Maria Augusta para fazer uma apresentação global da obra Cervantina e, especificamente, do Quijote, temas aos quais ela vem dedicando sua pesquisa há décadas. Como consequência, boa parte do grupo decidiu seguir a habilitação em espanhol.

Oficina de manuscritos desenvolvida no IEB.
Por fim, eu tinha uma última questão a pôr em prova: quão interessados estariam esses alunos a aprender a fazer pesquisas em arquivos? Então, propus como um encerramento do semestre uma Oficina de Manuscritos, que realizamos no Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, com o apoio bastante gentil de sua equipe. O horário foi diferente daquele de nossas reuniões habituais, o que impediu parte do grupo de comparecer por já terem compromissos em seus empregos que não poderiam desmarcar. De qualquer forma, a oficina que eu pensei que duraria pouco mais de uma hora se estendeu pela tarde inteira, cabendo a mim interromper o trabalho de transcrição para podermos fazer uma breve discussão e liberarmos o espaço dentro do tempo-limite que nos havia sido concedido. Os alunos ficaram muito nitidamente interessados por essa atividade e se engajaram bastante, tanto na discussão quanto no esforço de transcrição de manuscritos dos séculos XVII e XVIII.

Atualmente, estou tentando dar um próximo passo com eles: quero me distanciar do grupo. Não fisicamente, pois continuarei participando de todas as reuniões, mas quero garantir que o grupo tenha autonomia e não precise da minha presença para que as reuniões sejam devidamente conduzidas por seus membros. Quero, também, chamar novos alunos de primeiro ano, e ajudar os alunos da formação original do grupo a conduzir esses calouros por um processo análogo ao que eles passaram em 2018. Eles sugeriram a comédia A Tempestade, para que 2019 também se inicie com Shakespeare, ainda que em uma discussão mais concisa do que a realizada no primeiro semestre de 2018.

Retornando, portanto, à tese que me foi apresentada há exatamente um ano, fico muito feliz em conseguir agora argumentar com alguma propriedade de que não se trata de um desinteresse geracional ou natural. Os alunos que entram no curso de Letras da USP têm sim um interesse bastante grande em ter acesso a esse tipo de material que, embora povoe o nosso imaginário, raramente frequenta as nossas listas de leituras. Há um apagamento do passado em cursos de graduação em letras no país. Há, também, uma hipervalorização do presente em curso. Dado que o nosso país parece caminhar a passos largos na vanguarda do retrocesso, é capaz que essa hipervalorização do presente acabe nos levando a um ressurgimento do interesse pelo passado em um futuro próximo. Gracejos à parte, o excesso de presença de textos de dois séculos em currículos de graduação cria um perigoso efeito de saturação nos estudantes. Lendo textos dos séculos XIX e XX exaustivamente, sentem que leram respectivamente a tradição e a sua ruptura e, portanto, estão perfeitamente aptos a compreender globalmente o presente. Essa saturação é perigosa, pois apaga mais de dois mil e quinhentos anos de práticas letradas que deveriam interessar diretamente a esses alunos.

Relendo, após 1 ano e leituras que perpassam mais de 4 séculos, a sentença infame de que “Ninguém quer ler essas coisas velhas”, percebo problemas na compreensão de três partes dessa frase. Primeiramente, “ninguém” quem? Quando consultados, a esmagadora maioria dos jovens alunos decidiu ler essas velharias. Por vezes, limitações de ordem prática do cotidiano (distância até a universidade, custo do transporte público, preguiça, cansaço causado pela dupla jornada como estudante e trabalhador etc.) os impediam de seguir essa vontade que declaravam, mas fato é que não cruzei com um aluno sequer que me dissesse que simplesmente não se interessava pelo tema. Em segundo lugar, “essas coisas velhas” se referem a quê, exatamente? Em um ambiente em que são lidos quase que exclusivamente textos de dois séculos repetidamente, coisas anteriores a isso são caracterizadas como velhas ou novas? Eu percebia surpresa, riso e espanto nos alunos em muito literalmente todas as reuniões, porque os textos falam de e para mundos que não existem mais e, por isso mesmo, são absolutamente originais e novos para quem os lê pela primeira vez.

Por fim, o terceiro termo da frase, central para a discussão: que significa “ler”, nesse caso? Creio que entendo a tese da colega que me abordou assim provavelmente no corredor. Pensando de acordo com historiografias literárias, não creio que haja de fato muitos alunos interessados em ler um texto escrito há muitos séculos para localizar as características que um manual determina que devem ser encontradas ali para satisfazer o que se espera de uma “boa” leitura. Tentei levar os alunos a ler os textos sem adotar essas categorias interpretativas que muitos críticos definem a posteriori e prescrevem que o leitor deve encontrá-las a priori nos textos. Somos um grupo de estudos e de leitura, então discutimos os pressupostos dos argumentos apresentados nos textos, e busco explicitar referências que, para calouros, talvez não sejam evidentes. Fora isso, pressupus, para a leitura dos alunos, a inteligência e o interesse deles – que acho que devem ser sempre pressupostos, em qualquer situação. Como retribuição, tive em mãos um grupo extremamente interessado e que participava ativamente de todas as atividades propostas.

Além disso, pude finalmente demonstrar, ainda que para mim mesmo e, agora, para a meia dúzia de leitores que me aguentaram até este ponto, que o desinteresse é fruto de um discurso paternalista que tenta “proteger” estudantes de temas e estilos considerados obscuros para o que se imagina que a geração atual consiga compreender com algum interesse. Se sairmos do campo das abstrações e efetivamente confrontarmos os alunos com textos de outras épocas sem paternalismo e simplificações, notaremos um interesse vivo e pulsante por esses temas. Sigo fazendo isso há um ano e, agora, pretendo ensiná-los a fazer isso com a próxima geração de calouros para que, idealmente, esse ciclo possa se alimentar sem a necessidade de uma intervenção externa minha ou de quem quer que seja.

Comentários

  1. Caio, a cada ano que passa, mais aumenta a minha admiração pela sua pessoa (falo do acadêmico, mas também e muito da sua personalidade e caráter - sem os quais o acadêmico não brilharia). Este relato me deixou mentalmente emocionada. O que se pode mais querer da vida acadêmica e do tempo que compartilhamos nela?

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  2. As experiências dos antepassados são grandes perante as nossas. O achismo tem nos limitado.
    A indignação nos faz buscar o nosso melhor, para sermos veículos do conhecimento da sabedoria ancestral. Fico feliz Caio de perceber que está trilhando este caminho.

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