Um excerto inédito de Nuvem Colona de Gustavo Matte

por Rafael Tahan


Este espaço é reservado para criação literária e leva o título de lavradouro, caixa baixa: neologismo cuja arquitetura, pensada pelo poeta Jaci Bezerra (1968, Murici AL), concentra dois vetores semânticos frequentemente associados à poesia. 1: lavra: lavrar, lavoura, lavrador  & suas adjacências: trabalho manual, feitura: poíēsis (ποίησις); 2: d'ouro, corruptela para de ouro, termo cujo eco remonta o passado glorioso do mito (l'âge d'or): e seu antigo ideal : a perenidade: exegi monumentum. Tensionando ofício e permanência fissuramos o significante (núcleo duro do vocábulo); uma vez atomizada, a palavra converte-se em valise: do lastro semântico vemos surgir a ruína semiótica; se por um lado  negamos a sua permanência, por outro  revelamos a possibilidade: menos um pilar, mais um tijolo.
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< Paulinho > Não foi nesse dia que vocês deram carona praquele fantasma?

< Rony Adriano > Foi! (risos)

< Leno > Ôme-do-céu!, essa da caroneira fantasma, se não foi uma peça que pregaram com a minha cara, foi a coisa mais assustadora que já me aconteceu na vida.

< R. Mutt > Certo que isso aí foi palhaçada do Rony contigo.

< Rony Adriano > Bem que eu gostaria, mas não foi, não! O motora também tava lá. Como que eu ia armar pra cima do Leno com o motora vendo?

< Leno > Bom, eu vou contar a história, então, e tu tira as tuas conclusões. Dentro da Nuvem, o pessoal é dividido: tem gente que acha que aconteceu de verdade, e tem gente que acha que foi pegadinha do palhação aí. Só que o problema é que eu dormi, e isso dá margem pra qualquer interpretação.

< Rony Adriano > Te organiza, piá. Vamos contar do início pra ele entender. A gente saiu de Curitiba um pouco depois da meia-noite daquele dia, sem dormir, e caminhamos quase 2 horas da minha casa até o Contorno Leste. O plano era ir pegando carona na beira da estrada até chegar em Floripa. E que fique claro que só aceitei essa ripongagem porque tava sem dinheiro até pra comer.

< Leno > A gente chegou, caminhando, aí pelas três da manhã, no contorno leste com a BR 376, num posto de gasolina. Eu tava calculando que, tipo, na pior das hipóteses, se a gente desse muito azar, a gente chegaria em Floripa perto do meio dia. Mas tivemos uma puta sorte. O primeiro caminhoneiro que a gente abordou tava indo direto pra ilha e topou levar a gente.

< Rony Adriano > Era um caminhão bem pequeno, só de dois eixos, mas a cabine era grande, daquelas com quatro portas e tudo. Então, eu subi pela frente e fiquei do lado do motorista, e o Leno ficou no banco de trás.

< Leno > Olha, caminhoneiro que dá carona de madrugada só pode ser porque tá se sentindo sozinho, com sono, e precisando de gente pra conversar. E foi bem isso. Só que, como o Rony tava do lado dele, a conversa foi fluindo entre eles ali, e eu, podre de cansado, comecei a pescar. Aí eu lembro que começou a chover forte, mas eu já tava vendo tudo turvo, me esforçando pra ficar acordado fazendo companhia pros dois. De repente, os faróis do caminhão iluminaram uma moça no acostamento, com o polegar esticado assim e uma plaquinha escrito “Floripa”, toda encharcada da chuva. O motora não teve dúvida. “Coitada”, eu lembro que ele ainda disse, enquanto encostava o caminhão e ligava o pisca alerta. No retrovisor, a gente viu ela correndo na nossa direção. O Rony botou a cabeça pela janela e falou assim: “sobe na porta de trás!”. E ela subiu e sentou do meu lado. Era uma guria tão branca que parecia um palmito.

< Rony Adriano > Ela se apresentou e tudo, mas eu não lembro o nome dela. Lembro que o caminhoneiro se chamava Carlos, isso eu lembro. Carlão. Então eu e o Carlão seguimos a viagem conversando. O ôme era bom de papo, falava mais que o João da Cobra. Às vezes a gente perguntava a opinião da menina sobre o assunto que a gente tava debatendo, e ela até falava, mas não muito. Era só o suficiente pra responder as nossas perguntas. De repente, o Leno começou a roncar. Aí, a conversa com ela também foi morrendo e eu e o Carlão ficamos ali no nosso ping-pong do banco da frente.

< Leno > Eu apaguei, cara. Blecáute total. Não vi mais nada.

< Rony Adriano > E o Carlão começou a falar de política. Era uma época meio pré-eleições, mas ainda antes daquela greve dos caminhoneiros que ficou famosa. A história não tem nada a ver com isso. Mas eu lembro que o Carlão era um caminhoneiro comunista. Começou a falar de mais-valia, revolução e o caralho no volante. Um caminhoneiro versado em Marx, rapaz. Pensando agora, acho que o fantasma da história era ele. (risos)

< Leno > Aí eu acordei, me babando, com a primeira claridade da manhã na minha cara, e os dois ali na frente falando sobre a prisão do Lula, o Carlão xingando o Sergio Moro, o Temer, o Bolsonaro, e o Rony só se divertindo, botando lenha na fogueira...

< Rony Adriano > Eu tava me fingindo de bolsonarista pra irritar o Carlão (risos).

< Leno > ... E aí eu olhei pro lado assim e vi que a guria não tava mais lá. “Cadê a fulana?”, eu disse, e o Rony olhou pra mim e respondeu assim: “acordou, bela adormecida? Tamo quase chegando”. E eu repeti: “sim, mas cadê a fulana? Ela não ia descer com a gente em Floripa?”. Então o Rony olhou pro lugar onde a guria deveria estar e eu só vi ele arregalando os olhos: “Puta que pariu, Carlão, a muié sumiu”. Ali, na hora, a reação dele pareceu bem natural, sincera.

< Rony Adriano > E foi sincera, caramba! Não tem mutreta! A guria realmente sumiu!

< Leno > E o Carlão, mas sem parar de dirigir, olhou pelo retrovisor e não encontrou nadinha, depois ele esticou o pescoço por cima do ombro assim e vasculhou o banco de trás com os olhos. Deu pra ver ele ficando branco. Aí a gente quase se matou. A mão dele se desorientou no volante, o caminhão deu uma oscilada na pista, meio que derrapou, não sei, chegou a cantar pneu, e a gente quase bateu de frente num caminhão que tava vindo na outra direção e deu uma buzinada comprida pra gente. Então, o Carlão encostou na beira da estrada e a gente desceu.

< Rony Adriano > A gente revirou aquele caminhão, cara. Até na carroceria a gente procurou. No porta-luvas, embaixo do tapete, tudo. Não tava em lugar nenhum.

< Leno > Eu fiquei sem acreditar. Olhei pros dois e só falava assim: “vocês tão de piada comigo, não pode ser. Conta logo, ô Rony. A guria pediu pra descer no meio do caminho e vocês resolveram me pregar essa peça”. E o Rony: “capaz, meu! Daonde? Como é que o Carlão aqui ia me deixar fazer uma coisa dessas?”. Mas eu não conseguia acreditar. Ainda mais vindo do Rony.
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Gustavo Matte é romancista, ensaísta e crítico literário. Coordena e produz conteúdo para o blog https://entrevistaacena.wordpress.com/

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