por Rafael Tahan

Este espaço é reservado para criação literária e leva o título de lavradouro, caixa baixa: neologismo cuja arquitetura, pensada pelo poeta Jaci Bezerra (1968, Murici AL), concentra dois vetores semânticos frequentemente associados à poesia. 1: lavra: lavrar, lavoura, lavrador & suas adjacências: trabalho manual, feitura: poíēsis (ποίησις); 2: d'ouro, corruptela para de ouro, termo cujo eco remonta o passado glorioso do mito (l'âge d'or): e seu antigo ideal : a perenidade: exegi monumentum. Tensionando ofício e permanência fissuramos o significante (núcleo duro do vocábulo); uma vez atomizada, a palavra converte-se em valise: do lastro semântico vemos surgir a ruína semiótica; se por um lado negamos a sua permanência, por outro revelamos a possibilidade: menos um pilar, mais um tijolo.
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< Paulinho > Não foi nesse
dia que vocês deram carona praquele fantasma?
< Rony Adriano > Foi! (risos)
< Leno > Ôme-do-céu!, essa da
caroneira fantasma, se não foi uma peça que pregaram com a minha cara, foi a
coisa mais assustadora que já me aconteceu na vida.
< R. Mutt > Certo que isso aí
foi palhaçada do Rony contigo.
< Rony Adriano > Bem que eu
gostaria, mas não foi, não! O motora também tava lá. Como que eu ia armar pra
cima do Leno com o motora vendo?
< Leno > Bom, eu vou contar a
história, então, e tu tira as tuas conclusões. Dentro da Nuvem, o pessoal é dividido: tem gente que acha que aconteceu de
verdade, e tem gente que acha que foi pegadinha do palhação aí. Só que o problema
é que eu dormi, e isso dá margem pra qualquer interpretação.
< Rony Adriano > Te organiza,
piá. Vamos contar do início pra ele entender. A gente saiu de Curitiba um pouco
depois da meia-noite daquele dia, sem dormir, e caminhamos quase 2 horas da
minha casa até o Contorno Leste. O plano era ir pegando carona na beira da
estrada até chegar em Floripa. E que fique claro que só aceitei essa ripongagem
porque tava sem dinheiro até pra comer.
< Leno > A gente chegou,
caminhando, aí pelas três da manhã, no contorno leste com a BR 376, num posto
de gasolina. Eu tava calculando que, tipo, na pior das hipóteses, se a gente
desse muito azar, a gente chegaria em
Floripa perto do meio dia. Mas tivemos uma puta sorte. O primeiro caminhoneiro
que a gente abordou tava indo direto pra ilha e topou levar a gente.
< Rony Adriano > Era um
caminhão bem pequeno, só de dois eixos, mas a cabine era grande, daquelas com
quatro portas e tudo. Então, eu subi pela frente e fiquei do lado do motorista,
e o Leno ficou no banco de trás.
< Leno > Olha, caminhoneiro
que dá carona de madrugada só pode ser porque tá se sentindo sozinho, com sono,
e precisando de gente pra conversar. E foi bem isso. Só que, como o Rony tava
do lado dele, a conversa foi fluindo entre eles ali, e eu, podre de cansado,
comecei a pescar. Aí eu lembro que começou a chover forte, mas eu já tava vendo
tudo turvo, me esforçando pra ficar acordado fazendo companhia pros dois. De
repente, os faróis do caminhão iluminaram uma moça no acostamento, com o
polegar esticado assim e uma plaquinha escrito “Floripa”, toda encharcada da
chuva. O motora não teve dúvida. “Coitada”, eu lembro que ele ainda disse,
enquanto encostava o caminhão e ligava o pisca alerta. No retrovisor, a gente
viu ela correndo na nossa direção. O Rony botou a cabeça pela janela e falou
assim: “sobe na porta de trás!”. E ela subiu e sentou do meu lado. Era uma
guria tão branca que parecia um palmito.
< Rony Adriano > Ela se
apresentou e tudo, mas eu não lembro o nome dela. Lembro que o caminhoneiro se
chamava Carlos, isso eu lembro. Carlão. Então eu e o Carlão seguimos a viagem
conversando. O ôme era bom de papo, falava mais que o João da Cobra. Às vezes a
gente perguntava a opinião da menina sobre o assunto que a gente tava
debatendo, e ela até falava, mas não muito. Era só o suficiente pra responder
as nossas perguntas. De repente, o Leno começou a roncar. Aí, a conversa com
ela também foi morrendo e eu e o Carlão ficamos ali no nosso ping-pong do banco
da frente.
< Leno > Eu apaguei, cara.
Blecáute total. Não vi mais nada.
< Rony Adriano > E o Carlão
começou a falar de política. Era uma época meio pré-eleições, mas ainda antes
daquela greve dos caminhoneiros que ficou famosa. A história não tem nada a ver
com isso. Mas eu lembro que o Carlão era um caminhoneiro comunista. Começou a
falar de mais-valia, revolução e o caralho no volante. Um caminhoneiro versado
em Marx, rapaz. Pensando agora, acho que o fantasma da história era ele.
(risos)
< Leno > Aí eu acordei, me
babando, com a primeira claridade da manhã na minha cara, e os dois ali na
frente falando sobre a prisão do Lula, o Carlão xingando o Sergio Moro, o
Temer, o Bolsonaro, e o Rony só se divertindo, botando lenha na fogueira...
< Rony Adriano > Eu tava me
fingindo de bolsonarista pra irritar o Carlão (risos).
< Leno > ... E aí eu olhei
pro lado assim e vi que a guria não tava mais lá. “Cadê a fulana?”, eu disse, e
o Rony olhou pra mim e respondeu assim: “acordou, bela adormecida? Tamo quase
chegando”. E eu repeti: “sim, mas cadê a fulana? Ela não ia descer com a gente
em Floripa?”. Então o Rony olhou pro lugar onde a guria deveria estar e eu só
vi ele arregalando os olhos: “Puta que pariu, Carlão, a muié sumiu”. Ali, na
hora, a reação dele pareceu bem natural, sincera.
< Rony Adriano > E foi
sincera, caramba! Não tem mutreta! A guria realmente sumiu!
< Leno > E o Carlão, mas sem
parar de dirigir, olhou pelo retrovisor e não encontrou nadinha, depois ele
esticou o pescoço por cima do ombro assim e vasculhou o banco de trás com os
olhos. Deu pra ver ele ficando branco. Aí a gente quase se matou. A mão dele se
desorientou no volante, o caminhão deu uma oscilada na pista, meio que
derrapou, não sei, chegou a cantar pneu, e a gente quase bateu de frente num
caminhão que tava vindo na outra direção e deu uma buzinada comprida pra gente.
Então, o Carlão encostou na beira da estrada e a gente desceu.
< Rony Adriano > A gente
revirou aquele caminhão, cara. Até na carroceria a gente procurou. No porta-luvas,
embaixo do tapete, tudo. Não tava em lugar nenhum.
< Leno > Eu fiquei sem
acreditar. Olhei pros dois e só falava assim: “vocês tão de piada comigo, não
pode ser. Conta logo, ô Rony. A guria pediu pra descer no meio do caminho e
vocês resolveram me pregar essa peça”. E o Rony: “capaz, meu! Daonde? Como é
que o Carlão aqui ia me deixar fazer uma coisa dessas?”. Mas eu não conseguia
acreditar. Ainda mais vindo do Rony.
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Gustavo Matte é romancista, ensaísta e crítico literário. Coordena e produz conteúdo para o blog https://entrevistaacena.wordpress.com/
por Rafael Tahan

Este espaço é reservado para criação literária e leva o título de lavradouro, caixa baixa: neologismo cuja arquitetura, pensada pelo poeta Jaci Bezerra (1968, Murici AL), concentra dois vetores semânticos frequentemente associados à poesia. 1: lavra: lavrar, lavoura, lavrador & suas adjacências: trabalho manual, feitura: poíēsis (ποίησις); 2: d'ouro, corruptela para de ouro, termo cujo eco remonta o passado glorioso do mito (l'âge d'or): e seu antigo ideal : a perenidade: exegi monumentum. Tensionando ofício e permanência fissuramos o significante (núcleo duro do vocábulo); uma vez atomizada, a palavra converte-se em valise: do lastro semântico vemos surgir a ruína semiótica; se por um lado negamos a sua permanência, por outro revelamos a possibilidade: menos um pilar, mais um tijolo.
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< Paulinho > Não foi nesse
dia que vocês deram carona praquele fantasma?
< Rony Adriano > Foi! (risos)
< Leno > Ôme-do-céu!, essa da
caroneira fantasma, se não foi uma peça que pregaram com a minha cara, foi a
coisa mais assustadora que já me aconteceu na vida.
< R. Mutt > Certo que isso aí
foi palhaçada do Rony contigo.
< Rony Adriano > Bem que eu
gostaria, mas não foi, não! O motora também tava lá. Como que eu ia armar pra
cima do Leno com o motora vendo?
< Leno > Bom, eu vou contar a
história, então, e tu tira as tuas conclusões. Dentro da Nuvem, o pessoal é dividido: tem gente que acha que aconteceu de
verdade, e tem gente que acha que foi pegadinha do palhação aí. Só que o problema
é que eu dormi, e isso dá margem pra qualquer interpretação.
< Rony Adriano > Te organiza,
piá. Vamos contar do início pra ele entender. A gente saiu de Curitiba um pouco
depois da meia-noite daquele dia, sem dormir, e caminhamos quase 2 horas da
minha casa até o Contorno Leste. O plano era ir pegando carona na beira da
estrada até chegar em Floripa. E que fique claro que só aceitei essa ripongagem
porque tava sem dinheiro até pra comer.
< Leno > A gente chegou,
caminhando, aí pelas três da manhã, no contorno leste com a BR 376, num posto
de gasolina. Eu tava calculando que, tipo, na pior das hipóteses, se a gente
desse muito azar, a gente chegaria em
Floripa perto do meio dia. Mas tivemos uma puta sorte. O primeiro caminhoneiro
que a gente abordou tava indo direto pra ilha e topou levar a gente.
< Rony Adriano > Era um
caminhão bem pequeno, só de dois eixos, mas a cabine era grande, daquelas com
quatro portas e tudo. Então, eu subi pela frente e fiquei do lado do motorista,
e o Leno ficou no banco de trás.
< Leno > Olha, caminhoneiro
que dá carona de madrugada só pode ser porque tá se sentindo sozinho, com sono,
e precisando de gente pra conversar. E foi bem isso. Só que, como o Rony tava
do lado dele, a conversa foi fluindo entre eles ali, e eu, podre de cansado,
comecei a pescar. Aí eu lembro que começou a chover forte, mas eu já tava vendo
tudo turvo, me esforçando pra ficar acordado fazendo companhia pros dois. De
repente, os faróis do caminhão iluminaram uma moça no acostamento, com o
polegar esticado assim e uma plaquinha escrito “Floripa”, toda encharcada da
chuva. O motora não teve dúvida. “Coitada”, eu lembro que ele ainda disse,
enquanto encostava o caminhão e ligava o pisca alerta. No retrovisor, a gente
viu ela correndo na nossa direção. O Rony botou a cabeça pela janela e falou
assim: “sobe na porta de trás!”. E ela subiu e sentou do meu lado. Era uma
guria tão branca que parecia um palmito.
< Rony Adriano > Ela se
apresentou e tudo, mas eu não lembro o nome dela. Lembro que o caminhoneiro se
chamava Carlos, isso eu lembro. Carlão. Então eu e o Carlão seguimos a viagem
conversando. O ôme era bom de papo, falava mais que o João da Cobra. Às vezes a
gente perguntava a opinião da menina sobre o assunto que a gente tava
debatendo, e ela até falava, mas não muito. Era só o suficiente pra responder
as nossas perguntas. De repente, o Leno começou a roncar. Aí, a conversa com
ela também foi morrendo e eu e o Carlão ficamos ali no nosso ping-pong do banco
da frente.
< Leno > Eu apaguei, cara.
Blecáute total. Não vi mais nada.
< Rony Adriano > E o Carlão
começou a falar de política. Era uma época meio pré-eleições, mas ainda antes
daquela greve dos caminhoneiros que ficou famosa. A história não tem nada a ver
com isso. Mas eu lembro que o Carlão era um caminhoneiro comunista. Começou a
falar de mais-valia, revolução e o caralho no volante. Um caminhoneiro versado
em Marx, rapaz. Pensando agora, acho que o fantasma da história era ele.
(risos)
< Leno > Aí eu acordei, me
babando, com a primeira claridade da manhã na minha cara, e os dois ali na
frente falando sobre a prisão do Lula, o Carlão xingando o Sergio Moro, o
Temer, o Bolsonaro, e o Rony só se divertindo, botando lenha na fogueira...
< Rony Adriano > Eu tava me
fingindo de bolsonarista pra irritar o Carlão (risos).
< Leno > ... E aí eu olhei
pro lado assim e vi que a guria não tava mais lá. “Cadê a fulana?”, eu disse, e
o Rony olhou pra mim e respondeu assim: “acordou, bela adormecida? Tamo quase
chegando”. E eu repeti: “sim, mas cadê a fulana? Ela não ia descer com a gente
em Floripa?”. Então o Rony olhou pro lugar onde a guria deveria estar e eu só
vi ele arregalando os olhos: “Puta que pariu, Carlão, a muié sumiu”. Ali, na
hora, a reação dele pareceu bem natural, sincera.
< Rony Adriano > E foi
sincera, caramba! Não tem mutreta! A guria realmente sumiu!
< Leno > E o Carlão, mas sem
parar de dirigir, olhou pelo retrovisor e não encontrou nadinha, depois ele
esticou o pescoço por cima do ombro assim e vasculhou o banco de trás com os
olhos. Deu pra ver ele ficando branco. Aí a gente quase se matou. A mão dele se
desorientou no volante, o caminhão deu uma oscilada na pista, meio que
derrapou, não sei, chegou a cantar pneu, e a gente quase bateu de frente num
caminhão que tava vindo na outra direção e deu uma buzinada comprida pra gente.
Então, o Carlão encostou na beira da estrada e a gente desceu.
< Rony Adriano > A gente
revirou aquele caminhão, cara. Até na carroceria a gente procurou. No porta-luvas,
embaixo do tapete, tudo. Não tava em lugar nenhum.
< Leno > Eu fiquei sem
acreditar. Olhei pros dois e só falava assim: “vocês tão de piada comigo, não
pode ser. Conta logo, ô Rony. A guria pediu pra descer no meio do caminho e
vocês resolveram me pregar essa peça”. E o Rony: “capaz, meu! Daonde? Como é
que o Carlão aqui ia me deixar fazer uma coisa dessas?”. Mas eu não conseguia
acreditar. Ainda mais vindo do Rony.
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Gustavo Matte é romancista, ensaísta e crítico literário. Coordena e produz conteúdo para o blog https://entrevistaacena.wordpress.com/
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