por Dax
Moraes
doutor em Filosofia, professor do Departamento de Filosofia da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Arthur
Schopenhauer (Danzig, 1788 – Frankfurt, 1860), filósofo alemão de notável
erudição, poliglota, ativo em um dos períodos mais importantes da cultura
germânica, é uma figura envolta por todo tipo de reducionismo, ao mesmo tempo
fecunda em suas influências e pouco conhecida no detalhe. Longe de ter sido um
anônimo em seu tempo, esperou muito até que obtivesse um reconhecimento mais
difundido e, até hoje, com frequência as menções não lhe fazem justiça. Não é
possível, aqui, passar em revista essas menções, honrar os bons estudos ou
examinar de perto seu legado, que, com certeza, é maior do que se imagina. Aqui
me proponho a recolher alguns elementos de destaque e tecer algumas breves
considerações sobre sua recepção.
De
modo geral, Schopenhauer é um pensador muito conhecido, mas de maneira
fragmentária. É bastante comum que o primeiro contato com suas ideias ocorra
por meio de coletâneas de excertos ou menções feitas por terceiros. Daí se toma
conhecimento de alguns elementos secundários ou que não podem ser adequadamente
compreendidos na falta de alguma familiaridade com o plano geral do qual foram
extraídos. Caso exemplar é o da “Metafísica do amor”, restrita, na verdade, à
paixão movida por ímpeto sexual, de modo algum constituindo tudo o que o autor
teria a dizer sobre o amor em geral, estando sempre em jogo o tipo de interesse
que desperta o sentimento e determina as ações. Por essa razão, a possibilidade
de um amor desinteressado sequer é abordada ali. Há também questões de fundo
que chamam muito a atenção do público, como a defesa do ascetismo, o
pessimismo, a irracionalidade da vontade – apontada como essência de tudo que
há na natureza –, a fantasmagoria do mundo e de cada indivíduo – que são meras
representações –, a impossibilidade da felicidade, da alteração do caráter... Enfim,
uma série de teses cuja verdade a maioria dos seres humanos não quer aceitar. A
isso se acrescentam os temas um tanto fortuitos que, longe de apaziguar,
alimentam polêmicas (às vezes bastante vazias), como o que Schopenhauer diz
sobre as mulheres, sobre os professores de filosofia, sobre o judaísmo, sem falar
nas diversas anedotas e crônicas somadas até que se tenha alguma desconfiança
com relação à “seriedade” da filosofia schopenhaueriana.
Todavia,
a compreensão do pensamento schopenhaueriano é frequentemente prejudicada
quando alguém se aproxima dele carregado de pressupostos. Se isso prejudica a
compreensão de qualquer pensamento – não apenas o filosófico –, a situação é agravada
quando a leitura vem precedida pela fama do “pessimista”, do “misógino”, “do
mal humorado”, “do professor sem alunos”, “do autor sem sucesso”, “do filho que
detestava a mãe” e assim por diante, ficando cada vez pior – ou seja: quando a
cada oportunidade, a cada teoria, se tenta “corroborar” algum desses rótulos a
fim de falaciosamente oferecer uma pretensa explicação para as teses de
Schopenhauer.
Importante
dizer é que, apesar de tudo, não se trata de uma filosofia desconsolada, mas
que se propõe oferecer consolo para todo mal, desde que suprimido o mal por
assim dizer radical: o querer (que, para Schopenhauer, é o nosso ser). Trata-se
de uma filosofia decididamente ateia que, simultaneamente, faz apologia do que
ali mesmo é apresentado como essência da mensagem evangélica original, elemento
reforçado pela conhecida (e pouco compreendida em toda a sua profundidade)
doutrina da compaixão como fundamento da moral. Por sua vez, essa mesma
filosofia não é de modo algum uma filosofia esperançosa... Assim, o que se
elogia no cristianismo é a abnegação, não o anseio pela vida eterna e a crença
de que, no final, tudo dará certo (ao menos para o justo). Nada há que se
esperar do futuro, pois o mundo será sempre o mesmo enquanto houver vida e,
enquanto houver vida, haverá sofrimento. Afinal, onde há vida há vontade,
querer-viver, desejo, egoísmo (entendido como interesse no próprio bem). Não se
pode existir sem ser, e este é vontade – sofrimento, então, nomeia o incansável
esforço pela sobrevivência e, sobretudo, o inescapável atrito com tudo aquilo contra
o qual cada um de nós disputa pelos meios de sobrevivência.
Há,
sim, em Schopenhauer, uma desesperança com relação ao mundo e à humanidade, uma
destruição sistemática e veemente de toda forma de otimismo, mas o lugar vago
não é jamais ocupado pelo desespero. Ótimo exemplo consiste em sua
originalíssima elucidação do suicídio: este jamais consistiria em um ato de
ódio à vida, uma negação da vontade de viver, mas, totalmente ao contrário
disso, uma violenta afirmação dessa mesma vontade de viver. O que o suicida
rejeita é a vida que tem, na qual sua vontade de viver se encontra travada e não
consegue se impor aos obstáculos. Quem põe fim à própria existência, portanto,
não suporta viver como tem de viver; pela incapacidade de aceitar o sofrimento,
seja seu ou do mundo em geral, prefere dar fim à própria vida em nome de algo
que a vida jamais pode ser ou oferecer, como quem diz: Se é assim, desisto. Nesse
indivíduo, a vontade não deixa de querer a vida, antes o move contra si mesmo –
o indivíduo não quer mais a si! Essa desistência não pode ser condenada de modo
hipócrita como o faz o otimista. O otimista se ilude e é recriminado por
Schopenhauer, sobretudo, por iludir a outrem, mas a salvação não pode tampouco provir
do desespero. Logo, por que o otimismo deveria ceder seu lugar a um lastimoso
pessimismo? O próprio Schopenhauer chega à melhor definição de seu pensamento
como um “realismo áspero”. Deve-se encarar a vida como ela é, ao invés de se
apegar a fantasias.

Por
isso, vem tantas vezes repetida a máxima segundo a qual “querer não se
aprende”. A vontade não é algo que se possa adquirir ou perder. A propósito,
uma grande polêmica relacionada a isso diz respeito à famosa possibilidade de
“negação da vontade (por ela mesma)”. Esse caso de exceção, que é ao mesmo
tempo a culminância do pensamento schopenhaueriano – segundo ele mesmo –,
significa a completa despersonalização do indivíduo, resultante de um
conhecimento que transcende a multiplicidade existente no mundo, reconhece sua
nulidade, ou seja, que a individualidade mesma é uma ilusão produzida pelo
nosso modo comum de conhecer. Portanto, a expressão corrente “perder a vontade”
é um abuso de palavras... O que pode ocorrer, sim, é perdermos o desejo, o
interesse por algo em vista de outro, ou em vista de nada, como no tédio – mas
aí já nos desviamos muito do assunto, quando a intenção era apenas esclarecer
por que, grosso modo, não nos é possível “perder a vontade” – lembremos:
sem esta, que é nossa essência, não existimos. Tampouco podemos adquiri-la,
pois já somos vontade quando surgimos no mundo, nesse ser se enraíza nossa
existência e nossas ações não são mais do que sua manifestação. O que se
adquire – e é disso que tratam os “Aforismos” – é uma extraordinária clarividência
sobre a própria essência individual, a vontade que eu mesmo sou, meu caráter
imutável. Isso pode se dar após longa experiência de minha própria interação
com o mundo, o que me faz bem e o que me faz mal verdadeiramente, o que se
encontra ao meu alcance e o que ultrapassa meu poder sem importar o quanto me
esforce para superar a mim mesmo. Depois de tudo isso e com um uso honesto e
imparcial de minha autocrítica, posso adotar para mim mesmo e pôr em prática regras
que me ajudarão a me conduzir na vida de acordo com o que sou, não de acordo
com o que eu gostaria de ser ou de possuir, menos ainda de acordo com o que os
outros esperam (ou eu acho que esperam) de mim. Em suma, a sabedoria de vida
não consiste de modo algum em uma receita para viver bem com os outros e
consigo mesmo, mas pura e simplesmente na exposição sobre como ser si mesmo,
sem o que não é possível bem-estar algum.
Uma
observação muito importante que cabe aqui é a seguinte: muito embora gere grande repulsa sua tese de que nosso ser (nosso caráter) é imutável, apenas por isso se torna possível reconhecer as
regras pelas quais nos pautamos em nossas ações, saber o que nos entristece ou
nos alegra, reconhecer em que somos bem sucedidos e no que fracassamos, com
quem nos damos bem e de que tipo de pessoas ou situações devemos nos afastar.
Por que tal descoberta – que não é tão modesta quanto pode soar – pode ser
chamada de “aquisição de um caráter”? Porque só quem adquire caráter é capaz de
agir de modo coerente consigo mesmo, ser si mesmo. De fato, para tanto, é
preciso pensar bem e, antes de tudo, ser. Aliás, quando consideramos alguém
confiável, que age ordenadamente, alguém de quem se sabe suficientemente bem o
que esperar, dizemos que tem caráter. No entanto, embora cada um de nós seja
imutavelmente desse modo ou daquele, na maioria das vezes e na maior parte do
tempo, se não ao longo de toda a vida, ficamos atentos às novidades, fazendo
planos, arriscando, tentando, imaginando, sonhando, adaptando, corrigindo, até
mesmo pedindo conselhos e fazendo terapias e cursos a fim de nos tornarmos o
que desejamos, não o que somos. Em vez de tentarmos descobrir a nós mesmos,
tentamos formar a nós mesmos. Fracassamos e tentamos de novo, ou somos bem
sucedidos sem tomar nenhum gosto por nossos próprios talentos empregados no que
é bom para os outros, mas não o certo para nós, e, graças a isso, grandes
conquistas passam a não ter valor interno algum. Alguém, por exemplo, se deixa
conduzir por motivos vários que o levam à carreira médica, seja por influência
da família, seja porque é algo valorizado pela sociedade, seja pela nobreza da
atividade. O estudo aborrece e exige muito esforço, mas daí vem o mérito. Os
cursos são concluídos com sucesso, o profissional é dedicado, competente, recebe
o devido reconhecimento e é recompensado de diversas formas. Ainda assim, sente-se
intimamente inconformado por ter sempre desejado algo diferente para si, sem
sequer saber o que, pois estava ocupado demais com seus planos, preferindo, às
vezes, não tê-los seguido. Nisso se resumem os cursos erráticos de vida, pessoas
que tentam de tudo e nada realizam, as alegrias vazias, o tédio, as comodidades
frustrantes e assim por diante, sem falar em tudo aquilo que se chama “falta de
personalidade/caráter”. Em poucas palavras, vemos que há uma grande diferença
entre ser um caráter e ter um caráter
Em
meio a essa discussão surgiu mais de uma vez o tema que figura entre os mais
agressivos contra nosso narcisismo: a imutabilidade do caráter – ou seja, que
cada um de nós é um caráter, conhecendo-o bem ou não. Como foi visto, só
há duas saídas: ou a supressão do caráter pela negação da vontade ou a
aquisição do caráter pela admissão consciente e refletida do que se é. Ambas
têm a própria imutabilidade do caráter como pressuposto e, portanto, não podem
ser objeto de escolha, ou seja, não cabe a nenhum sujeito arbitrar por um
caminho a tomar. Nenhum de nós tem qualquer gerência sobre o querer. É na
medida que não conhecemos bem nossa própria essência individual que pensamos
ter livre-arbítrio e supomos poder a qualquer momento mudar de ideia, de
sentimento ou modo de ser. Uma lição particularmente importante que decorre de
tudo isso é que, do mesmo modo que não podemos mudar a nós mesmos, não nos é
permitido esperar que os outros mudem, sendo cortada pela raiz qualquer
pretensa justificativa para a intolerância contra o modo de ser alheio. As outras
pessoas jamais poderão se transformar no que se deseja e espera delas, e nós
tampouco. Afirmar que o caráter de alguém é modificável abre, portanto, uma
possibilidade perversa: ser cruel com aquele de quem discordamos, quando seria
o caso de aceitá-lo ou, simplesmente, ignorá-lo. Se acaso a tese de
Schopenhauer não pode ser provada, também não pode ser refutada, valendo, no
entanto, por suas vantagens práticas. Infelizmente, porém, a vontade de cada um
é em geral muito intransigente para ignorar aquilo que, no outro, a desagrada e
parece atentar contra seu próprio interesse, mas isso antes corrobora a teoria
do que a enfraquece.
É
necessário compreender também que, no contexto de um certo fatalismo
metafísico, visto que tudo que existe apenas existe por um livre ato de vontade
sem causa, sem fundamento, sem razão, sem meta, não cabe no pensamento
schopenhaueriano nenhuma possibilidade razoavelmente defensável de o mundo ser
obra de um deus criador. Uma filosofia radical e confessadamente ateia, ao
mesmo tempo crítica das limitações intrínsecas do materialismo e comprometida
em solucionar os grandes problemas especulativos da modernidade, encontra em
uma Vontade eterna e insondável em si mesma a chave para a elucidação do mundo,
um mundo sem razão, sem começo e sem fim, dotado, no entanto, de um significado
moral. Não é no dom da vida ou na promessa de felicidade que o mundo, tal como
é, encontra tal significado, nem poderia. O significado não transcende o mundo;
é-lhe imanente. Se não há valores ou verdades absolutas, só a existência pode
nos dar parâmetros. O sofrimento no mundo, constitutivo de toda vida, na qual cada
indivíduo subsiste à custa das demais – o vegetal nutrindo-se do mineral, o
animal do vegetal e do animal mesmo, o animal humano fazendo uso irrestrito de
tudo quanto encontra diante de si como que à sua disposição –, é a chave para o
esclarecimento de que, no mundo, nada há de desejável que não seja passageiro,
que não seja aparência, nada que valha o sacrifício e o sofrimento de tantas
outras vidas para o sustento de uma só a cada dia. Tudo aquilo de que se faz
uso é a nossa própria essência replicada infinitamente e, desse modo, conforme
as conhecidas palavras de Schopenhauer, “a Vontade faminta crava os dentes em
si mesma”.
A
questão final reside em que: nenhum de nós foi posto nesse mundo por nenhum
outro, apenas pelo próprio querer. Eu sou vontade, sou querer existir, querer
ser nesta vida. Em virtude disso, de uma decisão que não foi tomada por este
indivíduo que sou – pelo contrário, sou este em virtude daquela –, todos os
outros são estimados na medida em que servem à minha sobrevivência ou são de
algum modo úteis para mim, direta ou indiretamente. É nesse sentido que cada
ser vivente, especialmente aquele dotado de consciência, carrega a
responsabilidade por todo mal. A vida é essa luta pela sobrevivência cujo
culpado não se pode encontrar em nenhuma outra parte senão na própria vontade
de viver, sobretudo naquela assumida com consciência. Isso antecipa o modo como
o existencialismo ateu do século XX abordará o difícil tema da responsabilidade
moral, que em Schopenhauer é ainda outra polêmica. Afinal, é difícil convencer
o psiquismo narcísico de que minhas ações não são livres (pois penso
escolhê-las enquanto delibero), de que livre é o meu ser, do qual elas decorrem
como expressão. A dificuldade surge enquanto penso que minha existência depende
das leis da natureza, da junção das células reprodutivas de meus genitores e,
em última instância, de um Criador, de um Big Bang ou do que for. Que assim
fosse: seria mesmo melhor culpar a outrem pelo que somos e pelo que fazemos, se
não dizer cinicamente “as coisas são assim mesmo”, ou não seria isso um ato de
má-fé, já que a responsabilidade só pode caber à vontade incriada de quem age?
É
evidente que mal se pode introduzir o tratamento dessas complexidades em tão
breves palavras. Contudo, são como faíscas que talvez deem a dimensão do brilho
que se oculta por trás dessas tênues fendas abertas na superfície do pensamento
schopenhaueriano. Este, por sua vez, em sua inteireza, muito embora anunciado
como sistema fechado no qual todas as partes se encaixam e que pode ser
acessado por qualquer via, deve ser adentrado, em primeiro lugar, pela doutrina
do conhecimento. Esta oferece as primeiras dificuldades que, uma vez superadas,
permitirão acesso mais sereno e seguro ao restante. Afinal, ali se estabelecem
os limites do que é permitido ou não conhecer, o que é possível pensar, o que
se torna necessário admitir. Ou seja, trata-se de conhecer os pontos de partida
assumidos pelo filósofo. Começar pela obra capital, O mundo como vontade e
representação, que ao longo de décadas foi sendo atualizada e melhorada
pelo próprio autor até sua morte, eis o mais indicado para quem quiser
realmente conhecer seu pensamento. É certo que a teoria do conhecimento não é o
que mais atrai a maioria das pessoas nas doutrinas filosóficas, mas compreender
a distinção feita por Schopenhauer entre “o ideal” e “o real”, bem como em que
sentido a matéria é real, como esses conceitos aparentemente tão banais são
resignificados pelo autor, são pré-requisitos indispensáveis para todo resto. Quanto
a isso, disponível em português, há como alternativa os Fragmentos para a
história da filosofia, bem menos denso, originalmente publicado nos Parerga
e paralipomena.
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