Cinco fragmentos líricos de Sofia Ferrés




por Rafael Tahan


Este espaço é reservado para criação literária e leva o título de lavradouro, caixa baixa: neologismo cuja arquitetura, pensada pelo poeta Jaci Bezerra (1968, Murici AL), concentra dois vetores semânticos frequentemente associados à poesia. 1: lavra: lavrar, lavoura, lavrador  & suas adjacências: trabalho manual, feitura: poíēsis (ποίησις); 2: d'ouro, corruptela para de ouro, termo cujo eco remonta o passado glorioso do mito (l'âge d'or): e seu antigo ideal : a perenidade: exegi monumentum. Tensionando ofício e permanência fissuramos o significante (núcleo duro do vocábulo); uma vez atomizada, a palavra converte-se em valise: do lastro semântico vemos surgir a ruína semiótica; se por um lado  negamos a sua permanência, por outro  revelamos a possibilidade: menos um pilar, mais um tijolo.
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a boca nas costas que doem 
clama. e as costas no corpo 
lembra – ousa lembrar

que há uma boca nas costas
que respira dor e lateja
há na boca um clamor 
que lembra corpo ferido 
no passado – o toque
do carinho à noite ou
a noite mal dormida
aos beijos. há na noite 
o passado ferido que
tenta lembrar e cala.

*

meu querido
esta é a noite da saudade.

pura intolerável, no jardim
das coisas ocas, sob a lua
lume do cheiro deixado na pele
da camisa branca – tão branca
que paira no ar da respiração.

ladeio a vela baixa e
testemunho o corpo 
que não veio mas está 
tão perto
emanando qualquer coisa 
entre a mão e o peito 
na chama dourada,
no contorno da noite

então caminho pela rua de preces
que quebra aos passos da espera.

*

aos domingos
ideias simples vêm me visitar
levo-as ao jardim e convido-as
a sentar na rede
refrescam-se com seus leques

falam-me da mente e da arquitetura dos ossos
fundamentos da terra, nervos, e que há muitos
ipês amarelos florescendo em São Paulo.

o que gosto de você
é a praia que carregas no olhar
e o sal
nos beijos longos
beijos recém saídos da fábrica quente

e as coisas simples:
um pássaro cantando sobre um fio
os olhos fechados às escuras
ouvir quantos passos teus cabem
entre as paredes de tanto ir e vir
no corredor.

tenho-te à flor da pele
com isso me alegro e
sossego.

num mínimo gesto
o vento começa a sofrer
pela preguiça da chuva à mercê 
da trovoada. gota a gota, 
vou deixando cair o rosto 
sobre o pano da rede
ao ritmo dos teus passos
resgatando o calor do teu corpo
conforme teus braços deixam de me agarrar.

*

o rio tem nele o universo que não se vê.
vigio-o. a visão habituada, e entretanto.
afundo os dedos por onde entra
um claro inebriante, a irrequieta
memória de ter sido
corpo em vertigem.

os pés alongam-se em medida
para o equilíbrio. o chão agora
é elemento propulsor
às cegas para o mar
cada gota nômade
anuncia no fluxo
o futuro oceano.

*

sei o que pensas quando olhas pra cima
e te calas – que a natureza te supera
vaporiza tuas palavras e te inclui no seu ecossistema 
sem que tuas ideias correspondam a nada. dispensas.

a matéria efêmera não morará em páginas de livro escrito.
nem o livro na estante à vista das visitas. olhas para cima,
vês o que diz esse cheiro ao vento, o pólen festivo,
a ciranda de efeitos – e calas, porque não é nada
que se pareça ao turbilhão enlouquecido de pensamentos
ao volume oco do cérebro, à tua mente exausta.


há um desmantelamento do muito que conheces
há o final de um vazio grávido de possibilidades 
mas não há cansaço que resista à mão na água –
decidida e inquebrantável na resolução de viver.


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Sofia Ferrés nasceu em Montevideo, tem formação na área de Artes (Universitat Politècnica de València), Exatas (Unicamp) e Sociais (Boston University). Lançou O Pequeno Livreto de Haicais (2017) pela Oficina Tipográfica de São Paulo e o livro En_vuelta (2018) pela Editora Laranja Original.

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