EM TEMPOS ESCUSOS: um poema inédito de Renan Nuernberger

por Rafael Tahan


Este espaço é reservado para criação literária e leva o título de lavradouro, caixa baixa: neologismo cuja arquitetura, pensada pelo poeta Jaci Bezerra (1968, Murici AL), concentra dois vetores semânticos frequentemente associados à poesia. 1: lavra: lavrar, lavoura, lavrador  & suas adjacências: trabalho manual, feitura: poíēsis (ποίησις); 2: d'ouro, corruptela para de ouro, termo cujo eco remonta o passado glorioso do mito (l'âge d'or): e seu antigo ideal : a perenidade: exegi monumentum. Tensionando ofício e permanência fissuramos o significante (núcleo duro do vocábulo); uma vez atomizada, a palavra converte-se em valise: do lastro semântico vemos surgir a ruína semiótica; se por um lado  negamos a sua permanência, por outro  revelamos a possibilidade: menos um pilar, mais um tijolo.
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EM TEMPOS ESCUSOS

guardar palavras, bricolagem,
preenchê-las com estopa e tinta preta.

guardar palavras, amansá-las,
aparando as arestas vez ou outra.

guardar palavras, passarinho,
maltratá-las na gaiola do poema.

guardar palavras, burilá-las,
retorcendo o pescoço da eloquência.

guardar palavras, mise-en-scène,
enquadrá-las num pouquinho de alegria.

guardar palavras, resguardá-las
de seu próprio veneno (exegese).

guardar palavras, data vênia,
ensejá-las formas nulas de altruísmo.

guardar palavras, resgatá-las
da errância de qualquer conversa fora.

guardar palavras, madrepérola,
retirá-las da sarjeta dessa língua.

guardar palavras, desdenhá-las,
ocultá-las em garranchos e grunhidos.

guardar palavras, grão de bico,
aceitá-las em sua falsa natureza.

guardar palavras, dissolvê-las
como drops, na saliva, céu da boca.

guardar palavras, interstício,
simulando tenazmente uma careta.

guardar palavras, enterrá-las,
calcinando as cabais provas do crime.

guardar palavras, abstêmio,
desligá-las de sua condição humana.

e sabendo tudo o quanto foi renúncia,
decantada a água turva desse brejo,

guardar palavras

leia-se – até perdê-las.


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Renan Nuernberger (1986) é doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo. Como poeta, publicou Mesmo poemas (Sebastião Grifo, 2010) e Luto (Patuá, 2017), ambos com apoio do ProAC da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo. Como crítico, foi responsável pela antologia Armando Freitas Filho (EdUERJ, 2011) para a coleção Ciranda da Poesia e organizou, em parceria com Viviana Bosi, a reunião de ensaios intitulada Neste instante: novos olhares sobre a poesia brasileira dos anos 1970 (Humanitas, 2018)

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