Lovecraft e a Ficção Científica




por Gustavo Martins, pós-graduando em Linguística pela FFLCH-USP

“A mais misericordiosa das coisas do mundo, penso, é a inabilidade da mente humana de correlacionar tudo que nele existe” (tradução livre). Com essa que se tornaria uma de suas mais icônicas citações, H. P. Lovecraft abre The Call of Cthulhu, talvez o mais famoso de seus trabalhos – ainda que não o mais exemplar de sua ficção.  Não surpreende que esse trecho tenha
adquirido tamanha fama, nessas poucas palavras estão sintetizadas inúmeras tópicas do “horror cósmico”: o confronto entre a finitude humana e a grandiosidade do cosmos; a loucura advinda da súbita percepção da insignificância do existir. Mas ainda que essa primeira afirmação seja verdadeiramente emblemática, sua continuação, quase sempre omitida, é também carregada de sentidos que permitem vislumbrar um outro aspecto da mythos. Diz o texto:

“Vivemos numa plácida ilha de ignorância em meio aos mares negros do infinito e não era suposto que fossemos muito além. As ciências, cada qual forçando em sua própria direção, ainda não nos fizeram muito mal; mas algum dia o juntar das peças dos conhecimentos disparatados irão abrir tão horrendas paisagens da realidade, e de nossa pavorosa posição nela, que iremos enlouquecer ante à revelação ou recuar da luz mortífera para a paz e segurança de uma nova era das trevas.” (trad. livre. LOVECRAFT, 2008, p. 355)

Há muito o quê se falar dessas quase cem palavras, ainda que parte apenas reitere e expanda as ideias da frase inicial. A loucura como resultado inevitável do encontro com o desconhecido é possivelmente o mais clássico dos motivos lovecraftianos, um elemento usado à exaustão por todos que seguiram em sua tradição ou que o tomaram como inspiração. Não seria difícil dizer que a imagem comum da ficção lovecraftiana é essa e sua reprodução contínua em toda sorte de obra derivada – desde a macabra trilogia do apocalipse de John Carpenter às mecânicas de sanidade no jogo de tabuleiro Call of Cthulu. Existe um outro ponto aí, uma tópica tão comum quanto a perda da sanidade, mas curiosamente tratada como fato secundário por muitos. O papel da ciência nesse processo.
É desnecessário dizer que todo autor é influenciado pelo zeitgeist que lhe cerca e que toda obra, em maior ou menor escala, reflete os caminhos e descaminhos da história humana. Lovecraft não é exceção. Nascido em Providence, cidade da Nova Inglaterra que seria palco recorrente de suas histórias, no ano de 1890, ele cresceu no que se poderia considerar um grande ponto de virada para o conhecimento. Desenvolvimentos no campo da astronomia ocorridos naquele tempo: a descoberta de corpos celestes além daqueles que a antiguidade clássica conhecera, além das revoluções no desenvolvimento de telescópios que revelariam aos olhos humanos o espaço profundo, por fim, a própria física colocaria em jogo conceitos que desafiavam a realidade antes imaginada. Foi nesse mesmo século XIX que Max Planck lançou as bases da mecânica quântica e meros cinco anos após o início do século XX Albert Einstein publicou seus artigos sobre a relatividade geral e a equivalência da matéria e energia. Mesmo no campo da tecnologia, grandes saltos ocorriam, o avanço das telecomunicações, a popularização do rádio e a criação de aviões plenamente funcionais. Esses desenvolvimentos permitiriam a exploração dos pontos mais extremos do globo e que as notícias sobre essas chegassem aos ouvidos do cidadão comum em velocidade nunca antes imaginada. Algumas dessas expedições foram até os polos e serviram de base para uma das mais clássicas obras do corpus lovecraftiano, At the Mountains of Madness. Tamanhos saltos no conhecimento humano em um período tão breve de tempo configuram aspectos notáveis e sem dúvidas chocante para alguém que viveu aquele momento. No espaço de trinta anos, a humanidade passou dos velhos e imprecisos rifles do XIX à destruição industrial da Primeira Guerra, da parca noção de magnetismo à mecânica quântica.
Em vista desses fatos, a menção de Lovecraft de um medo dos limites ao qual a ciência pode chegar parece muito mais concebível. Não que se pretenda aqui dizer que haveria nele ou em sua obra qualquer coisa de um reacionarismo anticientífico, um pavor ou aversão ao universo de saber que começava a se desvelar naqueles anos. A figura do cientista será peça central para Lovecraft, assim como a universidade. A Miskatonic, instituição ficcional na Providence mítica, é o lugar de muitas cenas do mythos e a pesquisa científica é moto contínuo, algo mais notável em At the mountains of madness, mas que perpassa toda a obra, desde o absurdismo kitsch de Herbert West - Reanimator - ao experimento em ficção científica que se desenha em In the walls of Eryx. Mesmo nos textos mais arcanos o linguajar científico é uma constante e descrições técnicas surpreendentemente precisas não são raras. Mesmo as mais estranhas e profanas das bestas são tratadas não como entidades místicas, demônios ou monstros mitológicos, mas como formas de vida cujas propriedades incompreensíveis são nada mais do que extensões das matérias alienígenas que as compõem. Nenhum momento representa isso melhor do que a detalhada descrição dos Elder Ones, um verdadeiro corte anatômico de criaturas de terror. O próprio Lovecraft expressou em suas cartas o desejo de se tornar um cientista e o fracasso em seguir a carreira foi uma das grandes decepções de sua vida.
Por que, então, é sempre a ciência a trazer a ameaça existencial? A resposta, novamente, está na citação inicial: “it was not meant that we should voyage far”. O mecanismo fundamental do horror Lovecraftiano reside numa desconfiança quanto às capacidades da raça humana. A tese central não é a de que a ciência seja em si algo maléfico, mas que uma noção antropocêntrica da realidade é falha. Daí nasce o inominável, as formas não euclidianas, o terror insuportável. Não por menos são o passado imemorável e as estrelas distantes os mais clássicos motivos do mythos – ambos são elementos que residem muito além do controle e da razão humanas, até mesmo de um ponto cognitivo. Mesmo a mais sábia das mentes, se exposta ao fato de que a distância entre o sistema solar e a estrela mais próxima é de 4,22 anos luz ou de que as primeiras formas de vida na Terra surgiram quatro bilhões e meio de anos atrás, é incapaz de verdadeiramente compreender o significado de tais coisas. E uma vez que a crença numa superioridade inerente do ser humano sobre todas as outras coisas constitui um dos paradigmas nucleares das civilizações, o risco iminente de que o véu se rasgue e que se torne inevitável percepção da “frightful position” da humanidade no plano cósmico é uma ameaça à própria natureza dos homens e de sua civilização. É curioso que o melhor entendimento desse horror não tenha vindo em nenhum dos incontáveis pastiches ou pretensas continuações do cânone Lovecraftiano, mas do The Hitchhiker’s Guide to the Galaxy e seu Total Perspective Vortex, uma máquina cujo único efeito é forçar sobre alguém a compreensão da escala do universo o que resultaria, inevitavelmente, na loucura. Eis aí Lovecraft destilado em uma imagem.
Diante disso, a ciência é uma ameaça, pois seus experimentos e descobertas avançam a percepção humana para muito além daquilo que o cérebro primata se especializou em interpretar. Daí a verdadeira ruína trazida pelo despertar do Cthulhu: a besta não é capaz de varrer o mundo com suas mãos – o corpo da criatura, de fato, não é capaz de muita coisa. O horror reside no mero fato de que algo assim possa existir. Nas mãos de outros autores, ainda maravilhados com as descobertas da ciência no século XX, as revoluções seriam positivas e levariam a humanidade para lugares nunca antes vistos, lugares maravilhosos onde a história humana continuaria ininterrupta. Oposto a isso, o cinismo de Lovecraft não vê no ser humano algo tão nobre ou tão capaz. Não por menos, o destino de tantos de seus protagonistas é a morte ou a loucura e a própria humanidade não é mais do que uma fração miserável do sonho de forças inconcebíveis.
Talvez a parte mais assombrosa de todo aquele trecho seja sua previsão final. Por décadas, a ciência foi vista como a solução para todos os problemas humanos, a tecnologia como o fato que consolidaria a ordem e a estabilidade de um mundo civilizado. Todo o século XX se pautou numa ideia de progresso infinito e irrefreável movido pela criatividade da mente humana. Mitos sobre a razão nasceram aí, falando sobre o potencial de nossos cérebros para moldar a própria realidade à sua vontade, dos efeitos milagrosos que se poderiam obter se a totalidade da capacidade neural fosse liberada. Esse tempo, porém, passou. O que a ciência hoje traz são lembretes de nossos limites, da devastação vindoura resultante de nossas ações e da profundidade estonteante do universo material. Diante de tantas descobertas e ameaças à sua frágil noção de si, a humanidade escolheu fechar os olhos, recuar para trás de ilusões de um passado nobre e feliz, de uma época em que a humanidade tudo podia e tudo fazia, para a “paz e segurança de uma nova era das trevas”. Como o típico anti-herói Lovecraftiano, quando confrontada com a realidade, a humanidade escolheu se voltar contra a ciência e regressar ao conforto da selvageria, aguardando em prece pelo fim inevitável.

LOVECRAFT, H. P. H. P. Lovecraft: The complete fiction. Nova Iorque: Barnes & Noble, 2008, pp. 355-379.


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