o pão: um microconto de Julia Bac


por Rafael Tahan


Este espaço é reservado para criação literária e leva o título de lavradouro, caixa baixa: neologismo cuja arquitetura, pensada pelo poeta Jaci Bezerra (1968, Murici AL), concentra dois vetores semânticos frequentemente associados à poesia. 1: lavra: lavrar, lavoura, lavrador  & suas adjacências: trabalho manual, feitura: poíēsis (ποίησις); 2: d'ouro, corruptela para de ouro, termo cujo eco remonta o passado glorioso do mito (l'âge d'or): e seu antigo ideal : a perenidade: exegi monumentum. Tensionando ofício e permanência fissuramos o significante (núcleo duro do vocábulo); uma vez atomizada, a palavra converte-se em valise: do lastro semântico vemos surgir a ruína semiótica; se por um lado  negamos a sua permanência, por outro  revelamos a possibilidade: menos um pilar, mais um tijolo.
________________________________________________________________________________


o pão 

Escrevo sem ter olhado o pão direito. Evito olhá-lo porque tenho fome. Chegando na padaria, amarrei a Estrela na grade, ela decidiu sentar bem no meio do lugar de passagem. O segurança foi fazer carinho nela, eu acompanhei tudo de longe, uma senhora perguntou se ela mordia. Acho que foi um poema do Francis Ponge que falava sobre um pãozinho, se não me engano o pão era uma paisagem. O pão, na verdade, não era uma paisagem. Ele citou o pão e falou algo que eu acho, mas não tenho certeza, lembra a palavra paisagem. Quando a senhora perguntou se a Estrela mordia, o segurança disse não e foi mostrar isso fazendo carinho na testa dela. A senhora resolveu fazer carinho também e falou alguma coisa que eu não escutei. Eu via isso tudo de longe. Pedi um pãozinho francês. Eu queria mesmo era um croissant de chocolate, como não tinha perguntei sobre todos os outros tipos de pão, mas não tive vontade de nenhum. Pedi um pão francês. Segui para o caixa e o pãozinho custou 89 centavos. Fiquei com vergonha de pagar com cartão. Desamarrei a Estrela da grade. Agradeci ao segurança e caminhamos voltando pra casa. Já na esquina, a Estrelinha viu um outro cachorro ainda longe, quando se aproximaram ficaram um tempo parados se encarando (neste momento o pão está dentro de um saquinho de papel na minha mão esquerda). O fato é que eu não lembro muito do poema do Ponge. Lembro que gostei lembro de ter pensado que deveria ler mais Ponge (acabei de escrever ser mais Ponge ao invés de ler mais Ponge). Depois que os dois brincaram um pouco, o outro cachorro fez xixi no arbusto ao lado. A Estrela foi cheirar o xixi dele e continuamos no caminho de volta pra casa. Chegando, coloquei o pão sobre a mesa. A Estrelinha achou que o pão era pra ela e ficou sentada ao lado da mesa me encarando. Tirei o pão do saco, escolhi uma toalhinha branca, estendi sobre a mesa e coloquei o pão sobre a toalha. Sinto o cheiro do pão, a casca crocante. Mas evito olhá-lo por mais tempo porque tenho fome. 
________________________________________________________________________________


Julia Bac é formada em História (PUC/2004) e Artes Visuais (Centro Universitário Belas Artes/2009). Fez o CLIPE/Poesia 2017 da Casa das Rosas e estudou no núcleo de ficção do Curso de Formação de Escritores do Instituto Vera Cruz (2018). Em 2013 publicou o livro os dias (Ed. Giostri) e em 2018 o zine “olha aí­ olha aí­ a promoção paga 10 reais senhora é poema a partir de 10 reais” de forma independente. Atualmente publica seus poemas no blog papelpele.com



Comentários