Presença de Otto Maria Carpeaux (IV)


Os anos finais


Se Otto Maria Carpeaux foi de fato nosso primeiro leitor dialético, como sugere seu amigo e admirador Alfredo Bosi, a ideia de um abandono completo da literatura em prol da atuação política faz-se menos absoluta que relativa. A despeito da busca contínua por diversos lugares de dizer, redefinidos à medida que o jugo arbitrário da censura se impunha, Carpeaux continuava, ainda que em menor intensidade, escrevendo, pensando e respirando literatura.
O segundo volume de seus Ensaios reunidos (2005), que abriga um total de 205 artigos, apresenta apenas uma dupla destes de datação posterior a 1968, data emblemática de sua saída dos círculos literários. O mesmo volume inclui, também, sua longa apresentação à seleta da obra de Ernest Hemingway, publicada em 1971 no âmbito da coleção “Tempo, vida e obra” da editora Bruguera em parceria com o Instituto Nacional do Livro, volume composto por excertos das narrativas mais famosas do autor norte-americano: O sol também se levanta, Por quem os sinos dobram, Adeus às armas, Paris é uma festa e O velho e o mar.
A apresentação de Carpeaux, intitulada “Vida, obra, morte e glória de Hemingway”, começa relembrando sua inevitável tristeza ao saber da morte do escritor em 1961: “estou neste momento escrevendo sobre ele como se tivesse perdido um amigo de muitas horas e de vida inteira”. A “glória” referida no título estaria relacionada, para Carpeaux, com a impressionante disseminação de Hemingway entre leitores diletantes e especializados em uma época enfaticamente “cansada de literatura”. A inextricabilidade entre amor e guerra em suas obras fala, também, de outra mistura profusa, o conúbio entre fatos vividos e imaginação: “o que é inventado serve para conferir ao vivido a dignidade de símbolo de uma cidade, de um estilo de vida, de uma geração, de uma época.” Discorrendo sobre o primeiro romance de Hemingway, O sol também se levanta, Carpeaux destaca sua importância representativa livre de ideologias ostensivas, em que os personagens falam como os americanos de fato falam e se veem razoavelmente libertos dos tabus sexuais puritanos, constituindo-se em “obra básica de toda a literatura norte-americana moderna”.
A preferência indubitável do crítico por Adeus às armas dá-se, em grande medida, pelo fato de que nessa obra “o verdadeiro classicismo se caracteriza pela subordinação do romantismo inato e invencível à capacidade de suprimi-lo e de dizer, no entanto, sem ares acadêmicos, algo de novo”. Se no ofício do conto Hemingway se ombreia com diversos mestres da forma, abrindo possibilidades não de todo exploradas, uma de suas marcas distintivas, para Carpeaux, é o recurso ao understatement, “o esforço para dizer sempre o que se pensa com o mínimo de palavras [...] não deixando perceber a emoção íntima”. Assinalando a “morte pela violência” como núcleo vivo de sua obra, Carpeaux articula que essa contenção emotiva em nome da expressão precisa não implica a elisão de todo enlace afetivo entre o escritor e sua criação, pois se há uma verdade que emerge da leitura contínua dos escritos do norte-americano é a de que o “ficcionista precisa ter sentido aquilo que inventa; mas não precisa tê-lo experimentado”.
Entre 1971 e 1975, Carpeaux atua como colaborador da Enciclopédia Mirador Internacional, dando continuidade, em certo sentido, ao trabalho desenvolvido junto à Grande Enciclopédia Delta-Larousse na metade final dos anos 1960, sempre como braço direito do amigo Antonio Houaiss. Embora os verbetes não estejam assinados, é possível perceber marcas de seu estilo e de suas afinidades eletivas em entradas que certamente lhe eram caras, como “Joseph Conrad” ou “Jacob Burckhardt”. O estudo mais aprofundado e rigoroso sobre este tipo específico de trabalho intelectual, que inevitavelmente exigirá copiosos cotejos com seus ensaios, constitui um ponto cego na fortuna crítica de Carpeaux.
Entre 1972 e 1977, a revista Manchete publicou mais de 200 artigos pertencentes a uma seção chamada “As obras-primas que poucos leram”, cujo foco privilegiava livros bastante conhecidos, mas efetivamente pouco lidos. Entre os colaboradores, havia nomes de monta como Antonio Houaiss, Paulo Mendes Campos, Carlos Heitor Cony, Josué Montello, Viana Moog, Raymundo Magalhães Júnior, Lêdo Ivo e um jovem e irreverente Ruy Castro. Carpeaux foi responsável por pelo menos 23 desses artigos, apresentando ao leitor obras de Cervantes, Zola, Thomas Mann, Conan Doyle, Chesterton, Flaubert, Bocaccio, Dickens, Hans Christian Andersen, entre outros, incluindo algumas não tão conhecidas assim, como O anjo azul, de Heinrich Mann, e Bubu de Montparnasse, de Charles-Louis Philippe. Três décadas depois, a escritora Heloisa Seixas reuniu a maior parte destes textos em quatro volumes publicados entre 2005 e 2006 que adotam o título da seção. Em breve prefácio, Seixas indica que os escritos de Carpeaux, com sabor de prosa amiga, digressões aparentemente desconexas e uma quantidade impressionante de informações, não deixam de instilar certos comentários políticos, sobretudo no caso de autores e obras de posicionamento ostensivamente conservador, contrários às suas convicções (SEIXAS, 2005, p. 10).
No texto que abre o primeiro desses volumes, datado de 23 de dezembro de 1972, Carpeaux se debruça sobre O castelo, a obra menos conhecida entre as mais famosas de Kafka. Uma “displaced person” desde o berço, Carpeaux adverte que Kafka não pode ser chamado de escritor tcheco, pois o que se entende por Tchecoslováquia (atualmente República Tcheca) só nasceu em 1918, seis anos antes da morte do escritor, e Praga, sua cidade natal, era então a capital de uma província austríaca. Traçando a história acidentadíssima dos manuscritos kafkianos, Carpeaux reforça o desejo expresso do autor em não ser publicado post mortem, uma vez que “não considerava seus escritos como literatura e não quis sobreviver como escritor”. Em um texto em que o dado pessoal (algo razoavelmente raro em Carpeaux) se mescla à interpretação crítica, o ensaísta insere de modo quase direto excertos do seu “Meus encontros com Kafka”, relato divertido e curioso sobre sua relação com a vida e obra do autor d’A metamorfose, um então quase completo desconhecido que chegou a conhecer pessoalmente em Viena e cuja obra apresentou ao público brasileiro em seus primeiros textos na imprensa.
Em sua leitura de O castelo, romance mais estático e fantástico (“um pesadelo sem fim”) que O processo, Carpeaux observa a relação entre a intensificação de um estilo friamente realista e o fortalecimento das forças irracionais na trama novelística, discrepância que fomenta uma aura de ambiguidade permanente entre o inesperado do evento e o despojado do relato. Percebendo que “O homem de nossos dias vive sacudido pela angústia kafkiana, mas não reconhece nem quer reconhecer a natureza religiosa dessa angústia.”, Carpeaux discute algumas abordagens religiosas d aobra kafkiana, como a judaica – acertada, mas restritiva – e, via diálogos complexos com Pascal e Kierkegaard, a cristã. Ato contínuo, o crítico propõe uma interpretação “austríaca”, que incorpora uma nota ao rés do chão ao pensar O castelo no âmbito de uma sátira ao feudalismo e ao excesso burocrático presentes nos latifúndios aristocráticos da Boêmia, então província da monarquia dos Habsburgo. Por fim, antes de retornar ao relato pessoal, dando notícia de sua ida em junho de 1953 a Kierling, cidade nos arredores de Viena, em busca da casa de saúde em que Kafka morreu, Carpeaux acrescenta uma nota “puramente humana” ao seu percurso hermenêutico: “Talvez seja necessário ler as obras de Kafka literalmente. Sua obra é o espelho da existência humana.”

Fonte: Jornal Opção.
Em 1977, Carpeaux dedica-se a fazer correções para uma nova edição da História da literatura ocidental, que começaria a ser publicada pela editora Alhambra no ano seguinte, perdurando até 1982. Ainda em 1977, visita pela última vez o Velho Continente, experiência que motiva a escrita de uma breve série de quatro crônicas de viagem para a revista Manchete. Na terceira destas, “Viena, 40 anos depois”, Carpeaux delineia um retrato complexo de sua cidade natal em que a imponência do novo, irreconhecível, não impede a ressurgência dos “espectros do passado”, acompanhados de um sentido agudo de isolamento: “nunca na vida me senti tão solitário nessa cidade que foi minha cidade”. A confusão arquitetônica de estilos artísticos, a vocação cosmopolita e multiétnica da cidade, a negação mortal de todos os clichês – “Sim, senhor, sou de Viena, mas pelo amor de Deus, não me falem em valsas nem em psicanálise” –; tudo contribui para o olhar difuso do “filho pródigo” já septuagenário, cujo relato entremeia saborosas anedotas da juventude intelectual vienense do início do século e o desencanto irredimível diante do que se perdera: “Viena é hoje o monumento dos mortos e o cemitério dos vivos.”
O ano de 1978 testemunha, em meados de janeiro, a internação de Carpeaux no hospital Pró-Cardíaco por conta de um enfarte. Nos quinze dias em que permaneceu internado, a ocorrência de um segundo enfarte, seguido de enfisema, complicações renais e uma pneumonia dupla fizeram esmaecer a prodigiosa memória em que se agarrava para manter a lucidez. No dia 3 de fevereiro, entoa seu último brado: “Mais liberdade!”. O funeral foi realizado na capela 7 do cemitério São João Batista no dia seguinte, com o comparecimento de pouco mais de 50 pessoas e sem grandes pompas, discursos ou ritos religiosos, supostamente respeitando o desejo do crítico “em demonstrar a defecção religiosa do final da vida” (SILVA, 2015). Duas semanas depois, tal desejo seria questionado pela viúva Helena em uma carta ao Jornal do Brasil, em que assumia a responsabilidade pelas escolhas do funeral e dizia que, embora Carpeaux “não fosse um homem religioso”, muito de suas reflexões teriam liames íntimos com o “cristianismo e a cultura cristã”, em especial nos ideais de justiça social (CARPEAUX Helena, 1978).
 Os meses subsequentes registraram importantes tributos ao crítico. Além de diversos obituários, Carpeaux recebeu uma importante homenagem pública no Teatro Casa Grande no Rio de Janeiro em 6 de março, contando com o casal Fernanda Montenegro e Fernando Torres como mestres de cerimônia que, além da leitura de depoimentos e poemas, dramatizaram a fuga europeia, o exílio e a incorporação de Carpeaux ao Brasil. Em julho, o crítico foi capa do décimo e último número da importante revista literária José, contendo depoimentos de Drummond, Houaiss, Aloysio Branco, Gastão de Holanda, José Guilherme Mendes, Mauro Gama e Sebastião Uchoa Leite em memória do crítico, que comparecera também no número de estreia da revista, dois anos antes, com uma importante entrevista na qual ostensivamente afirmava – inclusive por meio de interrupções frequentes às perguntas – sua divisa ético-crítica: “Meu esforço foi sempre o de evitar a imprecisão.”
Mais adiante em 1978, dois livros seus são lançados. O primeiro, Alceu Amoroso Lima por Otto Maria Carpeaux, é uma biografia intelectual de um dos maiores nomes do pensamento católico brasileiro, nome que Carpeaux já conhecia antes mesmo de chegar ao Brasil e que foi também, como conta, “o primeiro brasileiro que conheci pessoalmente”. Pensando a vida de Alceu como uma “sequência de descobertas sucessivas da realidade brasileira”, Carpeaux destaca a importância da convivência com o emblemático mentor católico Jackson de Figueiredo e a adoção do famoso pseudônimo “Tristão de Athayde”. No âmbito específico da atuação como crítico literário, Carpeaux valoriza em Tristão algo que também lhe é caro: o equilíbrio entre o julgamento dos autores contemporâneos e o trabalho incessante de reavivamento do cânone, incluindo a importante tarefa de “ressuscitar autores injustamente esquecidos”. Além disso, se Tristão parecia prezar demasiadamente a mensagem das obras em detrimento da forma, foi dos primeiros a notar o excessivo esteticismo modernista, prenunciando o famoso mea culpa de Mário de Andrade em “O movimento modernista”. Por fim, cabe destacar a percepção geral de Carpeaux de que Tristão/Alceu constituía-se, no momento da escrita do livro, em “uma bandeira” cuja voz se levanta para exigir “o direito de todos os cidadãos brasileiros a um padrão de vida digno de criaturas humanas” bem como “a humildade das autoridades que existem para servir-nos em vez de dominar-nos conforme seus arbítrios e desmandos”.
O mesmo livro traz, ainda, uma excelente entrevista com Alceu, Antonio Houaiss e Antonio Callado, realizada em 27 de abril de 1978 com intuito de relembrar sua convivência com Carpeaux. Entre as muitas observações interessantes, vale salientar o entusiasmo com que Carpeaux realizava suas tarefas, sempre em tempo curto e com qualidade assegurada; o “imperialismo da cultura” presente em sua herança austríaca; o amplíssimo espectro de leitura, dando conta de muitos idiomas e literaturas; a humildade diante das literaturas que não dominava, sobretudo as orientais; uma angústia recorrente, uma “enorme tendência às paixões” que o levava a dilaceramentos contínuos, na escrita e na vida, dos quais decorria certo esmaecimento religioso; o “machismo inconsciente”, a despeito dos poucos preconceitos; e, não menos importante, um amor profundo pelo Brasil aliado à consciência profunda de suas mazelas estruturais: “ele descobriu, de certa forma, um país que o fascinava, um país em que o povo é amorável, muito merecedor de amor, sobretudo que ainda não está corrompido pela cultura, e um país onde as instituições não poderiam ser piores.”
O segundo livro póstumo de 1978 é a coletânea Reflexo e realidade, que traz 34 dos melhores ensaios escritos por Carpeaux. Em geral, o conjunto de textos não é muito diferente do que vemos em Vinte e cinco anos de literatura, a coletânea de 1968, cabendo destacar pequenas joias exclusivas do livro mas recente como “Sade, nosso contemporâneo”, “O ponto de vista de Gógol”, “Ex oriente lux” e “O romance como poema e a ditadura como realidade”. A organização coube ao poeta e crítico Sebastião Uchoa Leite, que assina também o prefácio, “Carpeaux e Alexandria”, uma das melhores introduções à riqueza da escrita ensaística de Carpeaux. Propondo uma “defesa de Carpeaux contra seus entusiastas”, o texto de Uchoa Leite destaca a variedade de métodos e a recorrência de certos procedimentos, entre os quais a reciclagem temática que se faz não apenas forma, mas também conteúdo. A introdução valoriza ainda o viés prosaico de sua crítica, em flagrante oposição à “idolatria do monumento intelectual”, interessando-se por temas menores como o “Destino do romance policial” ou a cena do porteiro em Macbeth (“As bruxas e o porteiro”), em que “o trivial irrompe como elemento de perturbação do trágico”. Por meio de uma leitura afiada e certeira, Uchoa Leite nos desvela o cerne vivo da crítica de Carpeaux que, em sua múltipla fragmentariedade de mosaico, debruça-se sobre “a interpretação da realidade ao nível simbólico das linguagens (a literatura, o pensamento, os mitos), constantemente referida a um nível concreto e histórico”.
Como fecho provisório – a ser sempre questionado, dialeticamente – de um percurso possível, fiquemos com outra observação admirável de Uchoa Leite, que apanha a dimensão combativa e simultaneamente ética de uma crítica de “entranhada afetividade”:
Mais ensaísta do que historiógrafo, Carpeaux escreveu sobre muitos autores e temas. Ensaísmo politemático e frequentemente dispersivo. Menos scholar do que diz, nunca se recusou ao tema do momento, como se vê sobretudo em Presenças e Livros na mesa. Nada do que escreve é de um erudito indiferente, e por isso é menos intenso o que escreveu contra, nessa crítica de entranhada afetividade. [...] Esclarecer problemas, estabelecer distinções e paralelos, salvar nos autores, mesmo no que parece inaceitável, a sua lição (vide os ensaios sobre Vico, Machiavelli, Casanova, Swift etc.), o que está vivo. (LEITE, 1978, p. 16)

E muito da crítica de Carpeaux, acrescentemos, ainda vive. Cabe-nos, agora, resguardar sua lição.

Na próxima e última parte, veremos a construção do legado Carpeaux e o estado atual de sua fortuna crítica.


Referências:
CARPEAUX, Helena. Otto Maria Carpeaux. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 17 fev. 1978, p. 10.
CARPEAUX, Otto Maria. Viena, 40 anos depois. Revista Manchete, ed. 1341, Rio de Janeiro, 31 dez. 1977, p. 126-131.
______. Alceu Amoroso Lima por Otto Maria Carpeaux. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978.
______. Vida, obra, morte e glória de Hemingway. In: Ensaios reunidos – Vol.II (1946-1971). Prefácio de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Topbooks; UniverCidade, 2005, p. 847-896.
______. O castelo de Franz Kafka. In: SEIXAS, Heloisa (org.). As obras-primas que poucos leram vol. I. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 13-30.
Enciclopédia Mirador Internacional. Rio de Janeiro: Encyclopædia Britannica do Brasil, 1983.
José. Literatura, Crítica & Arte. N.1, Rio de Janeiro, julho de 1976.
______. N.10, Rio de Janeiro, julho de 1978.
LEITE, Sebastião Uchoa. Carpeaux e Alexandria. In: CARPEAUX, Otto Maria. Reflexo e realidade: Ensaios. Organização e introdução de Sebastião Uchoa Leite. Rio de Janeiro: Fontana, 1978, p. 7-21.
SEIXAS, Heloisa. O mundo da palavra. In: ______. (org.) As obras-primas que poucos leram vol. I. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 9-11.
SILVA, Eduardo Gomes. Imagens de Otto Maria Carpeaux: esboço de biografia. Tese (Doutorado em História Social) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015.

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