Trecho de O Verão Tardio, romance inédito de Luiz Ruffato



Este espaço é reservado para criação literária e leva o título de lavradouro, caixa baixa: neologismo cuja arquitetura, pensada pelo poeta Jaci Bezerra (1968, Murici AL), concentra dois vetores semânticos frequentemente associados à poesia. 1: lavra: lavrar, lavoura, lavrador  & suas adjacências: trabalho manual, feitura: poíēsis (ποίησις); 2: d'ouro, corruptela para de ouro, termo cujo eco remonta o passado glorioso do mito (l'âge d'or): e seu antigo ideal : a perenidade: exegi monumentum. Tensionando ofício e permanência fissuramos o significante (núcleo duro do vocábulo); uma vez atomizada, a palavra converte-se em valise: do lastro semântico vemos surgir a ruína semiótica; se por um lado  negamos a sua permanência, por outro  revelamos a possibilidade: menos um pilar, mais um tijolo.
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"Márcio Luís Fonseca... Fizemos juntos parte do científico no Colégio Cataguases. No primeiro ano, minhas redações arrancavam elogios do severíssimo professor Haroldo Flávio de Carvalho Sá, o nome formando um verso sáfico perfeito, acentos na quarta, oitava e décima sílabas, repisava sempre, presunçoso. Autoritário, terno escuro, gravatas de cores sóbrias, humilhava os alunos pobres, chamando-os de burros, ignorantes, mentecaptos, mostrando, no entanto, condescendência com os filhos dos ricos, mesmo os mais estúpidos. Além disso, atentava para aqueles que ousassem cultivar ideias próprias sobre quaisquer temas, que qualificava indistintamente de roqueiros, maconheiros e invertidos, fossem cabeludos usando camisa colorida, calça jeans apertada, cinturão largo, bolsa a tiracolo, catinga de patchuli, fossem participantes de grupos de jovens que nos fins de semana dedicavam-se a ajudar na missa, a visitar asilos, orfanatos e famílias miseráveis e a programar passeios a lugares ermos para beber, fumar e namorar escondido. Em sua sofreguidão ufanista, o professor Carvalho Sá não perseguia apenas estudantes, espionava também os companheiros de ensino, e a esses chamava subversivos. A todos delatava ao doutor Aníbal Resende, delegado havido como valentão, que torturava os presos batendo com toalha molhada para não deixar marcas no corpo, conforme ele próprio alardeava em bate-papos no bar Elite. Mortos, ambos mantêm-se próximos, cada um nomeando uma rua num condomínio de classe média no subúrbio da cidade. O professor não guardava por mim afeição particular, por eu ser de origem operária, mas admirava o que exaltava como meu esforço e dedicação – não inteligência, para ele um atributo reservado aos que tinham berço. Minhas redações não possuíam nenhuma originalidade, apenas, apático, tinha aprendido a trafegar pelo leito seguro de uma estrada sinuosa, escrevendo da maneira como ele desejava, ou seja, corretamente. A frase, dizia ele, é feminina. E, como toda mulher, é vaidosa, gosta de se adornar. O adorno da frase é o adjetivo. Em excesso, torna-a vulgar. Ausente, mascara sua beleza. Entendi a lição nos primeiros dias e me tornei um exímio macaqueador do estilo que ele apreciava, A brasilidade de Alencar atualizada pelo modernismo com freio de mão dos neoparnasianos, doutrinava, sem que tivéssemos noção do que aquela discursama significava. Depois de ele me exibir na frente da sala, a recitar a folha de papel-almaço preenchida com letra cursiva, bem legível, como impunha, eu passava a composição no quadro-negro para a classe copiar. Enquanto isso, o professor conservava-se à mesa simulando ler, em silêncio, sempre um volume grande que usava como anteparo para melhor espreitar os alunos por cima das lentes grossas e pesadas e reprimir os bagunceiros ou engraçadinhos batendo em suas cabeças com a régua de madeira de cinquenta centímetros que mandara fazer especialmente para esse fim. Se agradar ao professor Carvalho Sá gerava hostilidade entre os alunos, por outro lado garantia não ser incomodado nas outras disciplinas, pelo temor que seu nome avivava entre o corpo docente. E eu o agradava não por admiração ou veleidade, como afigurava aos outros, mas por puro alheamento. Para não me aborrecerem, deixava-me convencer - as pessoas ao redor, satisfeitas, retiravam-se, e eu ficava só, estraçalhado por dentro, distraído do mundo."


(Trecho do romance O verão tardio, a ser lançado em maio, pela Cia das Letras)
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Foto de Tadeu Vilani, para o GAUCHAZH.
Luiz Ruffato – Lançou Eles eram muitos cavalos, Estive em Lisboa e lembrei de você, De mim já nem se lembra e Inferno provisório, entre outros. Seus livros ganharam os prêmios Machado de Assis, APCA, Jabuti e Casa de las Américas e estão publicados na Argentina, Colômbia, Cuba, México, Estados Unidos, Portugal, França, Itália, Alemanha, Finlândia, Macedônia e Moçambique. Em 2016 recebeu o Prêmio Internacional Hermann Hesse, na Alemanha. 

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