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"Márcio
Luís Fonseca... Fizemos juntos parte do científico no Colégio Cataguases. No
primeiro ano, minhas redações arrancavam elogios do severíssimo professor
Haroldo Flávio de Carvalho Sá, o nome formando um verso sáfico perfeito,
acentos na quarta, oitava e décima sílabas, repisava sempre, presunçoso.
Autoritário, terno escuro, gravatas de cores sóbrias, humilhava os alunos
pobres, chamando-os de burros, ignorantes, mentecaptos, mostrando, no entanto,
condescendência com os filhos dos ricos, mesmo os mais estúpidos. Além disso,
atentava para aqueles que ousassem cultivar ideias
próprias sobre quaisquer temas, que qualificava indistintamente de roqueiros, maconheiros e invertidos,
fossem cabeludos usando camisa colorida, calça jeans apertada, cinturão largo,
bolsa a tiracolo, catinga de patchuli, fossem participantes de grupos de jovens
que nos fins de semana dedicavam-se a ajudar na missa, a visitar asilos,
orfanatos e famílias miseráveis e a programar passeios a lugares ermos para
beber, fumar e namorar escondido. Em sua sofreguidão ufanista, o professor
Carvalho Sá não perseguia apenas estudantes, espionava também os companheiros
de ensino, e a esses chamava subversivos.
A todos delatava ao doutor Aníbal Resende, delegado havido como valentão, que
torturava os presos batendo com toalha molhada para não deixar marcas no corpo,
conforme ele próprio alardeava em bate-papos no bar Elite. Mortos, ambos
mantêm-se próximos, cada um nomeando uma rua num condomínio de classe média no
subúrbio da cidade. O professor não guardava por mim afeição particular, por eu
ser de origem operária, mas admirava
o que exaltava como meu esforço e
dedicação – não inteligência, para ele um atributo reservado aos que tinham
berço. Minhas redações não possuíam
nenhuma originalidade, apenas, apático, tinha aprendido a trafegar pelo leito
seguro de uma estrada sinuosa, escrevendo da maneira como ele desejava, ou seja, corretamente. A frase, dizia ele, é
feminina. E, como toda mulher, é vaidosa, gosta de se adornar. O adorno da
frase é o adjetivo. Em excesso, torna-a vulgar. Ausente, mascara sua beleza.
Entendi a lição nos primeiros dias e me tornei um exímio macaqueador do estilo
que ele apreciava, A brasilidade de Alencar atualizada pelo modernismo com
freio de mão dos neoparnasianos, doutrinava, sem que tivéssemos noção do que
aquela discursama significava. Depois de ele me exibir na frente da sala, a
recitar a folha de papel-almaço preenchida com letra cursiva, bem legível, como
impunha, eu passava a composição no quadro-negro para a classe copiar. Enquanto
isso, o professor conservava-se à mesa simulando ler, em silêncio, sempre um
volume grande que usava como anteparo para melhor espreitar os alunos por cima
das lentes grossas e pesadas e reprimir os bagunceiros
ou engraçadinhos batendo em suas
cabeças com a régua de madeira de cinquenta centímetros que mandara fazer
especialmente para esse fim. Se agradar ao professor Carvalho Sá gerava
hostilidade entre os alunos, por outro lado garantia não ser incomodado nas
outras disciplinas, pelo temor que seu nome avivava entre o corpo docente. E eu
o agradava não por admiração ou veleidade, como afigurava aos outros, mas por
puro alheamento. Para não me aborrecerem, deixava-me convencer - as pessoas ao
redor, satisfeitas, retiravam-se, e eu ficava só, estraçalhado por dentro,
distraído do mundo."
(Trecho
do romance O verão tardio, a ser lançado em maio, pela Cia das Letras)
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